Por EDUARDO CRUZ
Ler uma história em quadrinhos de Grant Morrison nem
sempre é algo fácil. Esse roteirista escocês, conhecido por fazer parte da
Invasão Britânica de roteiristas dos anos 80, raramente faz concessões à indústria
de quadrinhos para formatar suas histórias, tornando-as mais acessíveis e
palatáveis (leia-se mastigadas e superficiais) para o grande público,
preferindo, ao invés disso andar na contra mão: forçando a fruição de histórias
em quadrinhos a patamares não alcançados antes, utilizando recursos
estilísticos de narrativa ousados e originais, quase como se quisesse formar novas
gerações de leitores com HQs ainda mais estranhas do que as que ele próprio leu
quando mais jovem. Morrison escreve como se quisesse, sozinho, derrubar todo o
paradigma de como fazer (e ler) quadrinhos. Porém, uma vez que você se ajusta à
freqüência vibracional do autor, suas histórias podem ser tão divertidas e
recompensadoras quanto qualquer boa HQ que você já tenha lido e que não tenha
as toneladas de loucura e (aparente) caos que o carequinha utiliza para veicular
suas idéias.
"Espelho espelho meu, existe mago mais foda que eu?", pergunta Morrison. O espelho, sem querer se indispor com seu dono, permaneceu calado até o fechamento desse post. |
Lançado ano passado lá fora em uma mini
série de seis edições pela Image Comics (mais conhecida atualmente como “Nova
Vertigo” ;>) ), “Nameless” abre a história com Xibalba (o “local do medo” na
mitologia maia), um gigantesco asteróide em rota de colisão com a Terra. Como
se isso não fosse problema suficiente, o asteróide, de quilômetros de extensão,
tem um símbolo místico esculpido em sua superfície, e já neste primeiro momento
percebe-se que não se trata de um fenômeno tão natural ou aleatório quanto possa
parecer a princípio.
Acontece que Xibalba é um fragmento do planeta perdido
Marduk, o quinto planeta de nosso sistema solar, originalmente localizado entre
Marte e Júpiter, e destruído há 65 milhões de anos no fim de uma guerra cósmica
entre os habitantes de Marduk e “deuses” extradimensionais, imensamente poderosos,
que repudiam todas as formas de vida (Olha os “Arcontes” de “Os Invisíveis” de
novo aí, gente!). Uma guerra que ficou marcada em nosso inconsciente coletivo e
que permanece registrada em nossa memória genética, de tão devastador que foi
este evento, uma guerra entre o bem e o mal. Um ocultista freelancer conhecido
apenas como “Sem nome” (porque conhecer o nome de algo é ter poder sobre
aquilo. Um princípio básico da magia, que John Constantine, por exemplo,
aprendeu amargamente em Newcastle) é recrutado por um
consórcio de bilionários futuristas para uma missão desesperada. Junto com
outros especialistas em diversas áreas, empreendem uma expedição ao asteróide para
evitar a catástrofe que se aproxima, e no processo, desvendar seus mistérios, a
proverbial curiosidade que matou o gato, e ao que parece, vai levar toda a
humanidade junto.
Na dúvida, apele pros mitos de Cthulhu! |
À medida que se aproxima da Terra, Xibalba demonstra
um domínio psíquico sobre todos em nosso planeta e também sobre os astronautas
que estão a caminho de explorá-lo. O protagonista sem nome, como nós, leitores,
é incapaz de distinguir pesadelo de realidade, e o efeito que essa narrativa
provoca é desorientação, beirando o desconforto.
Alguém aí com saudades de "Crossed"??? |
A partir daí, a
expedição acaba despertando forças terríveis, mais precisamente um refém
daquela guerra travada há milhões de anos, uma das criaturas, ainda aprisionada.
A destruição do planeta Marduk foi o que assegurou o fechamento da passagem
entre o nosso universo e o dos “deuses”. A única criatura do lado de lá que
restou em nosso universo, jaz aprisionada no asteróide Xibalba, mas não
completamente adormecida. Uma criatura incorpórea, de poder imensurável, imortal,
onisciente e onipotente. Um ser que poderíamos chamar de... DEUS.
E nós estamos presos neste universo, sozinhos com Ele...
E dá-lhe referências ao Lovecraft.... |
Seria muito tentador, com base na
sinopse, reduzir “Nameless” a um mix de “Armageddon” mais “Gravidade” mais “O enigma do horizonte”, mas como é uma HQ da grife Grant Morrison, nada é o que
parece ser na primeira leitura e rótulos superficiais e reducionistas tornam-se
inúteis para “colocar na caixinha” esta excelente HQ.
Grant Morrison escolhe uns lugares estranhos pra guardar o frasco de desodorante... |
O próprio Morrison comentou, à época do lançamento da
HQ que a história enveredaria por um tom pessimista e visceral, uma declaração
de desprezo pela espécie humana, bem diferente do clima heróico e otimista que
o autor já nos ofereceu em obras como “Grandes astros - Superman” ou “Happy”,
por exemplo. Nas palavras do próprio Morrison:
“Uma perturbadora viagem para os limites
sem esperança do niilismo e da crueldade cósmica (...)
Nos meus
quadrinhos de super-herói, eu tendo a ser uma líder de torcida do espírito
humano, mas Nameless me dá a
rara oportunidade de articular um longo e sarcástico desprezo pela nossa
espécie, com suas egoístas e sentimentais ilusões suicidas, e sua
ganância.”
“Nameless” está para “Providence” assim
como “Pax Americana” está para “Watchmen”. Eu explico: pros amiguinhos que
curtem uma polarização, é notória a rixa entre o barbruxão Alan Moore e o carequinha Grant Morrison (na época ainda com seu corte de cabelo estilo
Beatles), cujo pivô foi um Roteiro de Miracleman - que aliás, finalmente viu a
luz do dia e chegou a sair aqui esse ano pela Panini no especial Miracleman Anual - que fez Moore dar um chega pra lá em seu aspirante a colega, na época.
Esse ressentimento pela desancada de Moore à pessoa de Morrison parece refletir
no trabalho e na escolha de temas de Morrison. Assim como ele aproveitou para
escrever sua própria versão de “Watchmen” no Capítulo “Pax Americana” da mini
série “The Multiversity”, agora ele envereda pelo horror cósmico com
“Nameless”, mais ou menos na mesma época que Moore lançou sua própria mini
série/carta de amor ao horror Lovecraftiano, “Providence”, pela Avatar Press.
Coincidências? Claro que sim! Afinal o universo é regido por puro caos e não há
um propósito definido para nada rs
De minha parte, acho tudo isso uma
grande bullshitagem. Os dois têm espaço garantido em minha estante (e em meu
coraçãozinho negro kkkk). Moore e sua maestria como contador de histórias, assim como
Morrison, também se mostra pleno de recursos narrativos que ajudaram esta mídia
a crescer, dialogar com seu tempo e dar seus respiros ao longo dos anos.
Claro, como todo texto de Morrison, “Nameless” está
recheado de referências obscuras, que exigem do leitor mais ávido, aquele que
quer tirar aproveitamento máximo do trabalho, uma pesquisa paralela para se
inteirar a respeito de termos e conceitos que o escocês maluco joga pra amarrar
sua história. Conceitos como os mitos de Lovecraft, alfabeto Enoquiano,
mitologia maia e polinésia, a cabala, e o mais interessante de tudo, feminismo! No
apêndice de “Nameless”, ele expõe e explica várias passagens da HQ, o que ajuda
a clarificar muita coisa e dar pelo menos um ponto de partida para pesquisas
mais aprofundadas. Mais uma vez citando Morrison e sua conclamação ao fim do patriarcado:
“Na filosofia Gnóstica, Sofia ou Sophia
(“sabedoria”) representa a fagulha de ignição do princípio divino feminino,
aprisionada no universo material falsificado de uma consciência demiúrgica
insana conhecida como Sabaoth, Ialdabaoth ou em alguns casos Samael, o deus
cego. Este senhor da lama (matéria) delirante, desaprovador e ciumento é o ser
a que tradicionalmente nos referimos como “Deus”.”
Sobre o significado da cena final da mini série,
Morrison tira o véu da metáfora:
(...) Aqui vemos Maat, a Filha da
Verdade, assumindo sua ascendência e tomando o controle das energias do Aeon,
finalmente pondo um fim à miséria de seu irmão louco e belicoso.
Basicamente, esta HQ inteira é uma
convocação às garotas para se erguerem, matarem o arquétipo de rock star-super
herói-guerreiro e salvarem o mundo!”.
Isso
pode distrair e até espantar leitores incautos, aqueles que desconhecem o teor
e o direcionamento do trabalho do Grant Morrison. O fato de Morrison usar
muitas abstrações e o intervalo sonho/”realidade”, sempre entrecortado, como se
fatiado e disposto em camadas ao longo dos capítulos, para evidenciar que a percepção
do tempo para “Deus” não se dá da mesma forma que a percepção humana pode ser
confuso até mesmo para os iniciados, o que exige uma segunda leitura a fim de organizar
todo esse caos. Assim, esses recursos não utilizados habitualmente na maioria
das HQs podem confundir e assustar quem está apenas atrás de uma história de
terror. Mais hermético, impossível. Mas é assim que Morrison gosta. E nós aqui
na Zona também.
Enfim, para os que estão acostumados ao estilo do
Morrison de narrativa, vocês sabem onde estão se metendo e vai ser mais uma
viagem divertida, e muito bem amparada por um artista muito detalhista e
competente. Chris Burnham – que trabalhou anteriormente com Morrison em “Corporação
Batman” - se equipara a monstros como Frank Quitely e Geoff Darrow. MAS ATENÇÃO! UM ALERTA AOS SENSÍVEIS: A
arte de Chris Burnham, formidável, alcançou aqui, amparada no roteiro de
Morrison, níveis de perversidade, grafismo e gore só vistos antes em “Crossed”,
de Garth Ennis. Não estou exagerando. Estejam avisados.
Corporação Batman, trabalho anterior da dupla Morrison / Burnham |
Ouch! Isso deve doer... |
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Gore, gore, gore... |
No mais, tudo vai ficar bem. Pode confiar. Não, não
olhe pra lua agora, tudo vai ficar bem....
Acompanhei as edições digitais pela Comixology, li umas três vezes a mini toda, mas confesso que não entendi tudo. Preciso dessas notas do encadernado pra dar uma iluminada.
ResponderExcluirAs notas ajudam bastante, mas ainda fica bastante coisa de fora, aí o jeito é correr no google. Um abraço!
ResponderExcluirRapaz, se você puder fazer uma análise sobre as referências ou a obra os invisíveis, agradeço, porque o último encadernado fiquei mais perdido que FDP no dia dos pais.
ResponderExcluirSó te peço paciência, porque sempre foi mesmo um objetivo da Zona Negativa fazer um textão bacana jogando uma luz em cima de "Invisíveis". O problema é que aparecem outras coisas pra ler no caminho hahahaha!!!
ExcluirVontade não falta, só tempo mesmo. Um dia sai! Quem viver, verá! rs
Abração!