terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Genealogia Lovecraftiana #002: A TERRA DA NOITE, de William Hope Hodgson








Por EDUARDO CRUZ




"Como podereis saber, como eu sei, a grandeza e o terror das coisas de que falo às claras? Pois nós, com a ridícula duração de nossas vidas não temos grandes histórias para contar, a não ser os poucos detalhes que sabemos dos anos que vão além de poucos milhares. Eu, porém, devo contar-vos nas páginas breves de minha vida aqui, o bastante de minha vida que foi, da vida que tive, dentro e fora da Poderosa Pirâmide, para deixar claro a quem possa ler a verdade daquilo que conto. Porém, as histórias do Grande Refúgio não se ocupavam de poucos milhares de anos, mas de milhões, até perderem-se nas trevas do que concebiam como os primeiros dias da Terra, quando o sol, talvez ainda brilhasse fracamente no céu do mundo. Mas, de tudo que houvera antes, nada sobrara, a não ser mitos e matérias que tinham de ser acatadas com cautela e tidas em dúvida por homens sãos e de sabedoria provada."



E eis que temos mais um livraço a sair do forno em 2018, dessa vez um clássico da literatura pós apocalíptica que levou 106 anos para ser publicado no Brasil! Bom, é como dizem: Antes tarde do que nunca! O livro A Terra da Noite foi originalmente publicado em 1912, mas inexplicavelmente, como muitos outros títulos, nunca ganhou uma edição nacional. A obra é um dos trabalhos mais notáveis do prolífico autor inglês William Hope Hodgson, que além de escrever contos e novelas, produziu ensaios e poemas, mas se destacava mesmo pela sua produção em terror, ficção científica e fantasia, além de se dedicar ao fisiculturismo (?!). Fora A Terra da Noite, Hodgson é conhecido por aqui pelo livro A Casa Sobre o Abismo, que teve uma adaptação em quadrinhos pela Vertigo em 2000, ilustrada pelo nosso queridão Richard Corben (e que foi publicada aqui com o título A Casa do Fim do Mundo pela Ópera Graphica em uma pavorosa edição em formato paraguaio e em preto e branco que me faz espumar de ódio só de lembrar. Nem o prefácio do Alan Moore salva essa publicação!). Hodgson teve uma morte trágica e prematura aos 40 anos, na Primeira Guerra Mundial, e era uma das influências confessas de Lovecraft, com suas histórias de horror estranhas e de escopo grandioso, como a dessa resenha em questão.

William Hope Hodgson


A Terra da Noite é um dos primeiros romances do subgênero Dying Earth (Terra Moribunda), um nicho da Ficção Científica com histórias ambientadas no futuro distante, ao final da vida na Terra ou no fim dos tempos, quando as leis da termodinâmica finalmente irão cessar e a entropia terminará por consumir tudo que existe. Temas como esgotamento dos recursos naturais, a já citada entropia e a esperança de alguma possível renovação predominam, e a diferença do Pós-Apocalíptico para o Dying Earth é que enquanto o primeiro subgênero trata de destruição catastrófica, o segundo aborda a exaustão entrópica da Terra, em um cenário sombrio e pessimista.  

Arte de J. Humphries


Arte de J. Humphries

A trama retrata nosso mundo daqui a milhões de anos no futuro. Nosso sol se apagou e os últimos humanos vivem confinados aos milhões no Grande Reduto, uma gigantesca pirâmide de metal de quilômetros de extensão e altura, no que talvez seja a primeira Arcologia da literatura. Do lado de fora, tudo é frio, estéril e desolado, e como se isso não bastasse, ainda há o cerco ao Reduto por criaturas malévolas e poderes desconhecidos na vastidão de noite eterna, em forma física ou etérea, seres que vão desde infernais cães maiores que cavalos até às colossais Sentinelas, monstros gigantes que observam o Reduto, imóveis há milênios, além de uma miríade de criaturas maléficas indescritíveis. Nosso protagonista, um jovem - e apaixonado - habitante da Pirâmide, resolve atender um distante chamado de socorro e se aventura na paisagem inóspita, enfrentando enormes perigos sobrenaturais. 

Arte de J. Humphries

Arte de Stephen Fabian

Arte de J. Humphries


A Terra da Noite foi publicado via financiamento coletivo pela Editora Clock Tower, uma editora pequena, porém extremamente engajada em trazer para o Brasil publicações clássicas de horror que sabe-se lá por quais razões foram ignoradas até então. Os caras são guerreiros, e se vocês não conhecem o trabalho sensacional que a Clock Tower desenvolve, shame on you! A editora resgata e lança uma luz sobre nichos e autores ainda injustamente ignorados por aqui, sempre relacionados direta ou indiretamente aos mythos de Lovecraft, ou no caso de Arthur Machen e Robert "O Rei de Amarelo" Chambers, influências seminais sem as quais talvez nossos queridos Cthulhu, Yog Sothoth e companhia não tivessem vindo a existir. A editora produz seus livros com muita garra, amor e tesão pela coisa, em um esquema de produção quase artesanal e na base do financiamento coletivo. Colaborei com o financiamento coletivo para a publicação de A Terra da Noite há cerca catorze meses e após tradução e revisões cuidadosas (e alguns problemas de força maior na revisão e com a gráfica), o livro finalmente foi para impressão em junho e entregue em agosto, se tornando assim o livro que mais gerou expectativas em toda a minha vida até agora rsrs. Pessoas são geradas mais rapidamente que os livros da Clock Tower, mas toda essa espera sempre vale a pena, porque no final, você tem em mãos material exclusivo e que costuma esgotar rapidamente! Mas fiquem frios: Denilson Ricci, o cabeça por traz da Clock Tower é extremamente confiável e atencioso, isso eu garanto. Perfeccionismo demanda tempo, garotada...   



“Mas, em todos os que se aventuravam no perigo da Terra da Noite, se inseria, sob a pele do lado interno do antebraço esquerdo, uma pequena cápsula. E, quando a ferida sarava, o jovem podia sair em sua aventura.

O propósito disso era que o espírito do jovem pudesse se salvar, se fosse capturado, pois, então, em honra de sua alma, ele morderia a cápsula e o seu espírito teria, imediatamente, a segurança da morte. Assim, julgai quão tenebrosos  horrendos eram os perigos da Terra da Noite.”


E o livro preenche todas as expectativas! Uma história que, fora um pouquinho de romantismo piegas e uma boa dose de machismo da era Vitoriana - vícios incontornáveis pertencentes à época em que foi produzido - carrega conceitos e elementos incríveis para uma história de Ficção/Fantasia que já tem 106 anos de idade: Idéias muito em voga a partir da segunda metade do século XX, como comunicação por telepatia; um pouco da tecnologia relacionada a eletricidade que Nikola Tesla concebeu é antevista aqui em equipamentos e armas; o conceito de Multiverso, mesmo que com uma nomenclatura diferente, também se faz perceptível; o Último Reduto da humanidade é uma fortaleza mega-arquitetônica que vai despertar em alguns leitores conexões com a Zion de Matrix, ou com a gigantesca nave colonizadora do filme Pandorum e até mesmo com a fortaleza de Immortan Joe em Mad Max - Estrada da Fúria, todas compartilhando a característica em comum de serem uma idealização de seus criadores para a preservação da humanidade. O livro conta com tradução e notas explicativas de José Geraldo Gouvêa, capa e dez ilustrações internas do artista Leander Moura, uma ótima biografia escrita por Filipi C. Pinto, além de mais alguns extras como glossário, notas finais e índice remissivo, além da relação dos nomes de todos que colaboraram com o projeto de publicação do livro (Sim, meu nome também está lá!😄).

Arte de Raymond C. Leung

O fabuloso Diskos, misto de machado medieval e motosserra elétrica, a arma mais confiável do futuro longínquo. Arte de Raymond C. Leung

O livro já foi comparado à obra de Tolkien, e até consigo ver o motivo desta comparação no quesito inventividade e ambição: Hodgson criou um mundo gigantesco e uma cronologia que abarca não milhares, mas milhões de anos, do "presente" do narrador protagonista, no século XVII, até esta era, sem sol e com a Terra moribunda. Além disso, existem outras idéias igualmente ousadas e que refletem todo o pessimismo em se aventurar fora do Reduto, como a tradição de se implantar uma pequena cápsula sob a pele do braço dos exploradores. Na eventualidade de um perigo impossível de se transpor, dentre as inúmeras aberrações e monstros que ocupam este mundo futurista moribundo, e com o intuito de "preservar o espírito", pois a morte física é algo brando perto das alternativas possíveis. Uma espécie de suicídio santificado. Uma solução desesperançada e cínica, que antevia os tempos negros à frente, às portas da Primeira Guerra Mundial. 


Arte de Zdzisław Beksińsk

Os monstros e criaturas são outro ponto de destaque da obra. Por vezes Hodgson representa entidades de imenso poder e com intenções insondáveis, ou simplesmente com uma aparente ânsia irracional por caos e destruição, ou até mesmo uma misteriosa indiferença. E é evidente que Lovecraft bebeu muito da obra de Hodgson como uma referência para compor a "personalidade" das entidades que viria a desenvolver. Forças opostas surgem, e parecem impedir as criaturas mais terríveis e poderosas de acabar com o Último Reduto, porém, essas forças aparentemente benéficas são igualmente misteriosas e insondáveis. Neste mundo existem criaturas que indubitavelmente tencionam destruir os humanos, e existem manifestações de Forças que não parecem compartilhar dessa intenção, embora também não se mostrem ostensivamente benéficas. Mas o mistério e as incertezas que pairam há milhares de anos sobre estes últimos podem ser tão perigosos quanto os primeiros. Em última análise, tudo é hostil e potencialmente perigoso neste mundo.  


“Então, crendo viajar por onde decerto encontraria as estranhas Portas na Noite, tive especial cuidado em meu progresso e me detinha, frequentemente, para ouvir e olhar, atentando para a Noite ao redor. Isto não serviu para evitar que eu encontrasse aquele pavor que assombrava o vácuo, pois, de repente, enquanto andava com todo cuidado, ouvi um distante zumbido descer da noite, ligeiramente atrás de mim, e o zumbido aumentou e ficou mais claro, e produziu aquele Som mais alto ainda. Depois de ouvi-lo, não pude duvidar que outra porta se abria acima, pois o som crescia da maneira como ouves um ruído distante que se aproxima, quando uma porta é aberta, de forma que o som, se produzido naquele lugar, parecera vir de outro. Mas esse som, embora vindo de perto, era como se chegasse de uma eternidade perdida e estranha. Tento explicar isso claramente, e não me culpeis muito por falhar, pois havia um horror tão medonho nisso que mal posso esquecer, e sempre tento fazer com que outros entendam como eu aquela desgraça e terror assombrando a noite.”
 

Arte de J. Humphries

Arte de J. Humphries

Arte de Stephen Fabian

Em seu ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura, Lovecraft descreve A Terra da Noite como "uma das mais potentes obras de imaginação macabra já escritas". Clark Ashton Smith, outro monstro sagrado das pulp fictions, escreveu que "Em toda a Literatura de Fantasia, existem poucos trabalhos tão puramente notáveis, tão puramente criativos quanto A Terra da Noite". Comparações com a prosa de Lovecraft são inevitáveis em certos trechos, como por exemplo a passagem abaixo. A Cor que Veio do Espaço? Não, A Terra da Noite!



“Era um lugar temível e estranho aquela Planície, como se um vácuo azul subisse da Terra por toda a região. A Planície não mostrava chamas, mas ficava oculta em uma estranha luz inconsumível, como uma atmosfera cintilante de cor azulada e fria, que não deitava nenhuma luz definida sobre a Terra da Noite, como deveria, mas uma que brilhava fria e muito assustadora, como um vácuo luminoso e azul. Os arbustos de musgo cresciam até a borda da Planície e pareciam negros e deformados contra a horrenda cintilação.”


Interessante é fazer um exercício de imaginação a respeito de como o cenário do livro de Hodgson pode ser encaixado como um possível futuro do nosso mundo no universo Lovecraftiano, quando as profecias sobre o retorno dos Antigos e outras monstruosidades abissais Cósmicas se concretizassem neste mundo pavoroso. Ler A Terra da Noite sob esse contexto cai como uma luva. Não pertence efetivamente ao cânone Lovecraftiano, porém mesmo assim pode ser deliciosamente lido como tal. Experimentem.

Arte de Sebastian Cabrol

Arte de Barbara Sobczynska

Mas a comparação não se limita apenas a Tolkien, que pode ter em certos momentos um tom muito lúdico e juvenil, o que leva muitos leitores a não se sentirem mais confortáveis ou satisfeitos em ler O Senhor dos Anéis ou O Silmarillion, por exemplo, depois de uma certa idade. O leitor pode se sentir deslocado, excluído, como se aquela obra não mais se comunicasse com ele. Com A Terra da Noite a diferença se faz sentir, pois é uma fantasia sim, e com elementos de ficção científica sim, porém com um tom mais dark (trocadilho não intencional heheheh). A questão do suicídio, já  abordada acima, bem como vários outros dilemas morais que os personagens de uma época tão sombria e difícil são obrigados a enfrentar por vezes surpreendem o leitor, e as cenas de ação.... WOW!!! Tão colossais quanto todas as descrições de cenários arquitetônicos são as batalhas onde milhares morrem em apenas alguns momentos. Pela violência absurda e o escopo grandioso eu incluiria como comparação, além da obra de Tolkien, a Bíblia Sagrada 😂

"Olhei em direção ao Volume e vi que vinha como uma Colina de Negrume sobre a Terra, e já bem próximo. Então, houve uma maravilha, pois, naquele momento, quando todos deveriam partir rápido para salvar suas almas, da terra subiu uma pequena Luz, como a luz crescente desta terra jovem. Ela subiu em um arco de fogo brilhante e frio, luzindo só um pouco, e se estendeu sobre os Dez Mil e os mortos. Nesse instante, o Volume se deteve, retornou e sumiu.

Então, os homens retomaram, depressa, seu retorno à Poderosa Pirâmide. Mas, antes que chegassem em segurança, o Ladrar dos Cães soou ao redor deles, e enfrentaram esse perigo, mas sem desespero, porque já haviam sobrevivido a uma ameaça bem maior. 

Os Cães estavam perto, como via pela Grande Luneta, e contei um cento deles a correr em bando com as grandes cabeças abaixadas. Logo que os Cães chegaram até eles, os Dez Mil se dividiram e houve um espaço entre eles para que pudessem usar plenamente aquele terrível Diskos, e lutaram com as empunhaduras estendidas e vi os Diskos a girar e brilhar e emitir fogo.

Houve grande batalha, pois a Luz que os cobria afastava o Poder de suas almas, mas não os protegia de monstros menores. Em mais de cem mil frestas da Poderosa Pirâmide,, as mulheres choraram e soluçaram e olharam de novo. Nas cidades de baixo se disse, depois, que era possível ouvir o partir e lascar das armaduras quando os Cães corriam por entre os homens a matar, e até o som dos ossos rangendo em seus dentes. Mas os Dez Mil não cessaram de feri-los com os Diskos e, logo, cortaram os Cães em pedaços. Entre os que saíram, houve mil e setecentos abatidos pelos Cães, mas os homens alcançaram a vitória.

Então, o grupo de heróis cansados veio para o abrigo do lar no Vasto reduto, trazendo seus caídos e, também, os jovens mortos, e foram recebidos com imensa honra, muito luto e grande silêncio, pois o caso não admitia palavras, até certo tempo se passar. Houve lamento em cada cidade da Pirâmide, pois não houve tristeza tal em, talvez, mais de cem mil anos."

Arte de Peter Andrew Jones

Eu poderia ficar enaltecendo o quanto essa fantasia dark é excelente até o Sol se apagar, mas acho que vocês já pegaram a idéia. Essa é, definitivamente, uma história que agrada a fãs de vários gêneros. Então, galera do Sci-Fi, galera da Fantasia, e sobretudo galera dos Mythos de Cthulhu, uni-vos na Terra da Noite!!!

"Vi, então, que a Terra da Noite que eu conhecia se ocultava de mim atrás da inclinação. Virei-me e olhei encosta abaixo e tudo em frente era um deserto desolado e escuro, e não parecia ir a lugar nenhum, senão rumo a uma noite eterna. Ali não havia nenhum fogo, nenhuma luz de qualquer tipo, só a Escuridão, e eu poderia senti-la: a Eternidade. Por aquela Escuridão adentro a grande encosta parecia seguir para sempre."
Arte de Raymond C. Leung



sexta-feira, 16 de novembro de 2018

BLACK CLOVER, de Yûki Tabata



                                                                                                               Por Ray Junior


"E na quinta folha reside o Demônio."

Asta e Yuno são órfãos que foram criados juntos numa igreja em um vilarejo remoto chamado Hagen, que fica no reino de Clover. Vivem num mundo onde todos possuem poderes mágicos em diferentes níveis, sendo eles o elemento decisivo para estabelecer hierarquias e fazer distinção de grupos. Asta nasceu sem nenhum, enquanto Yuno se mostra um prodígio com imenso poder mágico e talento pra controlá-lo. Ambos aspiram se tornar o Rei Mago, que lidera a Ordem dos Cavaleiros Mágicos do reino. A jornada dos garotos se inicia quando atingem idade suficiente para receber seus grimoire e prestar o exame de admissão da Ordem.

Tudo começa com uma promessa...

Criado e ilustrado pelo mangaká Yûki Tabata, o manga é publicado originalmente na Shonen Jump semanal, licenciado e publicado no Brasil pela editora Panini. Sendo um manga do gênero shounen, Black Clover mantém a estrutura de outras séries de sucesso do gênero e dialoga facilmente com fãs de Fairy Tail, Dragon Ball e Naruto, por exemplo. Por outro lado, seguir rigidamente a fórmula de sucesso de outros, prejudica a narrativa com clichês nesses primeiros capítulos, apesar de uma boa construção de cenário e apresentação dos  personagens centrais,definindo-os com personalidades distintas logo no início, além de cenas de luta empolgantes e um bom timming para as piadas. Infelizmente não é possível evitar o “eu já li isso antes” em determinados trechos e a previsibilidade e falta de inovação, mostram ser um problema que o autor precisará resolver logo de cara.

A mente criminosa por trás de Black Clover

Asta é o típico protagonista de shounen, determinado e focado nos seus objetivos, o sujeito que ouve de todos que nunca irá conseguir mas que usa isso como combustível para seguir em frente e nunca desistir. Apesar da mesma origem humilde, as coisas são muito mais fáceis para Yuno, que funciona como um contraste que valoriza as pequenas conquistas graduais de Asta. Após serem escolhidos por seus grimórios mágicos, o lendário livro do trevo de quatro folhas para Yuno e o surrado grimoire antimagia do trevo de cinco folhas para Asta, ambos passam nos testes para serem admitidos em alguma Ordem Mágica. A respeitada divisão da “Aurora Dourada” (sim, referência a AQUELA Golden Dawn) é o destino de Yuno, enquanto a única opção de Asta são os rebeldes e desajustados “Touros Negros Selvagens”, comandados por um líder igualmente disfuncional. Depois de algumas situações inusitadas, Asta é acolhido pelo restante do grupo e inicia seu treinamento e missões.

"Touros Negros Selvagens", aquele grupo de magos que você respeita


A expectativa boa para Black Clover é que algumas boas pontas na trama se desenvolvam, como o problema do abismo de desigualdade entre classes (a aristocracia detém grande parte do poder da magia e com isso oprime as classes desfavorecidas) e explorar essa questão certamente será uma bola dentro do autor. Aqui temos uma série com potencial mas que precisa urgentemente inovar e apresentar suas próprias características aos fãs.



Elite sendo elite


"Não sei usar magia, mas tenho uma espada gigante que o grimório do cramunhão me deu"


Publicada desde 2015 no Japão, o título tem periodicidade semanal e ainda está em andamento com 16 volumes, já tendo alcançado sucesso para uma adaptação em anime que começou a ser produzida em 2017. A edição da Panini é bimestral, com 192 páginas, pelo preço de R$21,90.








quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O ARTISTA DA FACA, de Irvine Welsh, ou "Nosso sociopata escocês favorito está de volta! E reabilitado! Mas nem tanto..."







Por EDUARDO CRUZ


"Na argila ou em carne viva, meu talento era ferir pessoas."


Eu não sei vocês, mas de toda aquela turminha de Edimburgo que o Irvine Welsh vem contando histórias nesses últimos vinte e poucos anos, desde Trainspotting, Francis Begbie é o meu favorito! E Welsh já declarou que sente o mesmo. "É mais fácil escrever sobre um personagem interessante", afirmou o escritor em uma entrevista. O hooligan sociopata, com sua personalidade altamente instável e imprevisível, deve ser um personagem recompensador de se escrever, já que alguém assim tão perturbado pode gerar muitas possibilidades dentro de uma trama com suas interações e reações. Francis James "Franco" Begbie é um daqueles personagens que deve praticamente se escrever sozinho dentro de uma história. 

"- A expressão de June assume uma timidez de menina que ele acha grotesca. - "Vou te contar, June, eu não ficaria surpresa se você e Franco acabassem juntos de novo."
- Eu ficaria - diz Franco com brutalidade, pensando: ela é uma porra de simplória. Por que eu não vi isso antes? Provavelmente porque eu era também."


Irvine Welsh veste o traje ficcional para entrar na própria obra e vender supositórios de heroína a um de seus personagens na adaptação cinematográfica de Trainspotting.

A trajetória de Begbie como personagem é bem sólida. Ele pouco mudou ao longo de toda essa grande história da rapaziada do Leith que se iniciou em Trainspotting, sua continuação, Pornô, e no prequel Skagboys, além de um breve, porém divertidíssimo conto na coletânea Requentando Repolhos. Sempre o cara estourado, estivesse alcoolizado ou não, extremamente agressivo e imprevisível, Begbie era o psicótico da turma, o que sempre resolvia tudo na porrada, sendo o terror dos desafetos e em alguns momentos até mesmo dos próprios amigos. Qual não foi minha surpresa então, ao saber que Welsh havia escrito uma história que cronologicamente se passa após Pornô, quando o personagem termina atrás das grades, protagonizada por um Francis Begbie - aparentemente - reabilitado! Logo ele, aquele que a gente tanto ficou esperando para ver o caminhão do carma passando por cima! 

Francis Begbie foi imortalizado no cinema pelo ator Robert Carlyle.
"Em certa época, ele fez planos bem avançados de incendiar a casa vizinha, ocupada por Cha Morrison, sua antiga nêmese. Agora fica assombrado ao pensar ter se importado o suficiente com esse sujeito para considerar essa ação. Que grande crime Morrison cometeu contra ele, ou ele contra Morrison? Nada lhe vem à mente. Foi tudo papo que depois se intensificou, tornando-se uma sequência bizarra de ameaças e contra-ameaças. Tirando isso, não havia base nenhuma para a rivalidade dos dois. Eles fabricaram conjuntamente esse conflito para conferir drama à vida, imaginando-o na realidade brutal."

É uma experiência um tanto inquietante para os leitores de Trainspotting e companhia, eu incluso, quando em O Artista da Faca nos deparamos com um Francis Begbie reabilitado, amadurecido e até mesmo, pasmem, sadio! Mantendo seu sociopata interior sob controle, Begbie vive na Califórnia, casado com sua terapeuta dos tempos de prisão, pai de duas filhas e é um escultor bem sucedido. Sob o pseudônimo Jim Francis, Begbie produz bustos mutilados de celebridades, canalizando assim sua fúria de maneira construtiva. A vida é boa, até que dois acontecimentos abalam o mundo sossegado que jamais imaginaríamos ver Francis Begbie habitando: Dois homens estranhos e perigosos ameaçam a ele e sua família na Califórnia, enquanto na Escócia seu filho mais velho é assassinado. De volta a Edimburgo para o funeral, será que a antiga antiga personalidade de Begbie virá à tona? Seria essa uma história de vingança? Será que Frank Begbie realmente é um cara zen agora? Ou está só muito mais astuto e ardiloso?

"- Tudo bem, Frank? - pergunta Larry.
Segue-se então uma calmaria ameaçadora na energia, como na pista de dança de uma boate lotada, pouco antes de o DJ colocar aquela faixa que vai fazer a pista enlouquecer. E ele percebe que o DJ é ele. Todos esperam que ele coloque a música. Para lançar o punho ou a bota, ou jogar o corpo, ou dar a cabeçada, ou até o grito horripilante pelo salão, o que vai acender o lugar.
- Sempre dizem "escute sua reação instintiva" - diz Franco em voz baixa. - Se eu ouvisse meus instintos, nenhum puto nesta sala estaria respirando. - Ele sorri alegremente. - E isso não seria bom - acrescenta ele."
É bem bacana acompanhar o desenrolar dos acontecimentos a partir do momento em que Begbie pisa em sua cidade natal. Na trilha para desvendar a identidade do(s) assassino(s) de seu filho, fiquei o tempo todo na tensão, esperando pelo estopim que despertaria o Begbie dos velhos tempos. E acontece? Aí vocês têm que ler, não vou roubar de vocês a chance de ficarem estarrecidos como eu fiquei, afinal a arte pode reabilitar, mas não faz milagres hehehehe... Também é muito bom constatar que Welsh manteve sua pegada de sempre. Assim que soube do lançamento de O Artista da Faca, meu sentido de aranha logo gritou "Caça-níquel! Caça-níquel!", mas fico feliz em atestar que estava errado! Welsh mantêm aqui os diálogos espertos e corrosivos sobre a sociedade que caracterizam suas histórias desde sempre, além de avançar com a história de um de seus personagens mais marcantes, não poupando o leitor em alguns momentos pesados. A imprevisibilidade reina, acrescida da tal tensão que já comentei ali em cima, e lá pela metade do livro é que vem o soco no estômago. A trama vai num crescendo cheio de suspense e violência, mas com espaço para situações cômicas, o que não é novidade para quem acompanha a bibliografia de Welsh. Além disso, vislumbramos alguns flashbacks da infância e juventude de Begbie, onde ele reavalia sua amizade com Mark Renton e até onde a família teve influência na formação de nosso sociopata favorito.




Ah, e vocês devem estar se perguntando "Mais alguém da turma de Trainspotting chega a dar as caras?". Sem dar spoilers, aparece sim! A única pista que vou jogar aqui é que é um dos carinhas da foto abaixo. Em quem vocês apostam? rs. Ah, e não vou nem falar da aparição bombástica na última página! Quero continuação já!!!!


Boa parte da arte é embuste. Bravata. Pura pose. E não sou só eu afirmando. Muitos artistas, críticos e estudiosos reforçariam essa declaração. Em muitas situações a intenção do artista é interpretada erroneamente, propostas não são bem compreendidas e o que era para ser bem sucedido se torna um fracasso, ou vice versa, e porcarias inclassificáveis inexplicavelmente recebem status de alta cultura. Mas o que prevalece acima de qualquer questionamento é o poder reabilitador da arte frente à força quase imutável de nossas próprias naturezas, e o quanto somos predestinados a sermos como nossos próprios pais, motes centrais desta história de Welsh. Se até um cara como Francis Begbie pode reescrever a história de sua vida - mesmo que com argila e facas - qual é a sua desculpa?




"Eu era uma das pessoas mais fracas do planeta. Não tinha controle nenhum sobre meus impulsos mais sombrios. Portanto, eu era alimento constante pra prisão. Algum escroto linguarudo fazia merda, tinha de ser dizimado no ato e eu voltava pra cadeia. Assim, esses ninguéns tinham total controle sobre meu destino. Esta foi minha primeira grande revelação: eu era fraco porque não tinha controle de mim mesmo. Melanie tinha controle de si. Pra ficar com alguém igual a ela, pra ter uma vida livre, não num conjunto habitacional no limiar da pobreza, nem mesmo num subúrbio e estropiado por uma vida inteira de dívidas, eu precisava ter a mente livre. Tinha de ganhar controle sobre mim mesmo."