quinta-feira, 5 de abril de 2018

A MENINA QUE TINHA DONS, de Mike Carey, ou "Ser humano não é nascer humano!"






Por EDUARDO CRUZ





Era uma vez uma menina.
Seu nome é Melanie. 
Melanie é uma menina adorável.
Melanie adora ler, é curiosa e vivaz, tem um QI evidentemente elevado, adora estudar e ama mitologia grega, em especial o mito de Pandora, que guardava todos os dons e todos os males em uma caixa.
Melanie é a menina que qualquer um se orgulharia de ter como filha.
Exceto por um detalhe: Melanie carrega um patógeno altamente contagioso e mortal, responsável pela gradual extinção da humanidade. Patógeno esse que transforma seus portadores em feras famintas, que devoram tudo que é vivo.




Ok, eu sei que essa última parte pode ter desanimado um pouco. "Ôrra, gordô, mais um livro de apocalipse zumbi, meu???". Pois é, eu mesmo comecei a ler e já tinha até decidido nem resenhar, porque era no que eu achava que tinha esbarrado: mais uma história de apocalipse zumbi, pós The Walking Dead. Preguiça só de pensar, não é mesmo??? 
Na Verdade, A Menina Que Tinha Dons é mais do que apenas um livro de zumbis, é uma história desesperançada nos moldes de Eu Sou A Lenda (bom, talvez não TÃO desesperançada assim hehehe), com personagens arquetípicos, porém bem interessantes, como o soldado durão, a menina heroína da história, a cientista louca, etc... Descobri o livro por causa do trailer da adaptação cinematográfica, que vi por acaso no YouTube, e claro, decidi dar um confere no material original.







A história se passa em um futuro distópico, cerca de 20 anos após a epidemia que transformou boa parte da humanidade nos Famintos, como os infectados são chamados na história. O agente infeccioso é uma mutação de um fungo, o Ophiocordyceps unilateralis, que infecta certas espécies de formigas, controlando-as enquanto se alimentam delas. E sim, esse fungo existe de verdade!



Percebam que o narrador fala da importância do Cordyceps para o controle populacional de algumas espécies de insetos. 
Agora notem como a espécie humana tem alcançado números desordenados e insustentáveis.
Agora tentem dormir depois dessa minhoquinha que eu pus na cabeça de vocês.
Boa noite hehehe.




Carey extrapola este conceito da "formiga zumbi" e o adapta à espécie humana como premissa de seu livro. O fungo modificado se apossa do sistema nervoso central do infectado e o transforma em uma máquina de mastigar e disseminar a infecção. Mas este é apenas o primeiro estágio da doença. O que vem a seguir é ainda mais nojento e mais perigoso, mas pra saber do que estou falando, leia o livro ;>) 



A história começa em uma base militar de pesquisas científicas na Inglaterra, e seu staff é composto de militares, professores, cientistas... e crianças. As crianças são infectadas, mas são especiais: elas mantêm sua capacidade de raciocínio, verbalização e cognição intactas, até que algo desperte o patógeno e elas virem feras famintas. Normalmente o gatilho é o cheiro, o calor corporal e até mesmo a linguagem corporal dos não infectados. Os professores dão aulas a estas crianças, uma maneira de avaliar a cognição e as reações delas. Tudo parte do trabalho de pesquisa para entender o cérebro infectado e tentar descobrir uma cura.


""Então a criança esteve sentindo nosso cheiro o dia todo e estava ficando meio louca de fome. Ela estava morta de medo de ter um surto e morder um de nós. Particularmente você. E foi por isso que ela queria que eu não lhe contasse nada. Ela não queria que você pensasse nela desse jeito, como um animal perigoso. Ela quer que você pense nela como uma criança de sua turma.""

Tecnicamente, os pesquisadores da base não as consideram humanas. Menos a Srta. Justineau, uma professora que acabou se importando demais com as crianças, especialmente com Melanie. Quando Justineau descobre que Melanie é a próxima a ir para um pavilhão de pesquisa de onde as crianças não voltam mais, a afeição fala mais alto e Justineau tenta resgatar Melanie das mãos da Dra. Caldwell, a pesquisadora chefe da base. O problema é que nesse exato momento a base é atacada por Lixeiros, humanos não infectados que vivem como saqueadores e bárbaros. Justineau, Melanie, a Dra. Caldwell, o Sargento Parks e mais um soldado, o jovem Gallagher, conseguem escapar dos Lixeiros e dos infectados que tomam conta da base, e agora eles têm um longo caminho até Beacon, a última grande cidade fortificada que restou, mas essa jornada suicida no mundo exterior é cheia de perigos e surpresas e muita coisa pode acontecer...


"(...) E, por fim, é tedioso, se algo pode realmente ser ao mesmo tempo assustador e tedioso. Todas as casas são iguais para Gallagher. Escuras. Cheirando a mofo, com carpetes esponjosos, cortinas mofadas e borrifos de bolor preto pelas paredes internas. Atulhadas de milhões de coisas que não fazem nada a não ser atrapalhar seu caminho e quase fazer você tropeçar. É como se antes do Colapso as pessoas costumassem passar a vida toda fazendo casulos para si mesmas com os móveis, objetos de decoração, livros, brinquedos, quadros e todo tipo de merda que conseguissem encontrar. Como se esperassem nascer do casulo como outra coisa. O que alguns acabam sendo, é claro, mas não do jeito que esperavam."

A Menina Que Tinha Dons é o primeiro romance de Mike Carey, que alguns de vocês vão lembrar ser um roteirista de quadrinhos. Carey já escreveu edições de X-Men, Quarteto Fantástico Ultimate, Hellblazer, Lúcifer e a adaptação em quadrinhos de Lugar Nenhum, um livro de Neil Gaiman. Não é exatamente meu escritor favorito desse pessoal da Invasão Britânica, porém, surpreendentemente, devo admitir que meu ranço por esse cara foi embora depois de ler sua estréia como romancista. Carey se mostrou um ótimo contador de histórias, e nos conduz por passagens de medo, adrenalina, tensão, comoção, tudo sem perder a mão até o final inusitado e imprevisível (no bom sentido!). 

Mike Carey





A menina Melanie que Carey constrói é incrível: superdotada, sensível, bastante corajosa e inclusive muito madura e realista a respeito de sua condição inumana. Ela entende que é uma espécie de faminto, pero sin perder la ternura jamás. Aceita isso sem necessariamente se entregar à sua sina. Tenta manter o que ela entende como sua essência. E aí reside a grande ironia de A Menina Que Tinha Dons: em um cenário onde a humanidade está desaparecendo, cabe a uma criatura não humana manter acesa a tocha da humanidade, botando o termo em xeque, como uma condição a ser atingida e não um status garantido por uma prerrogativa biológica. Em outras palavras: ser humano não é nascer humano! Outros personagens, como o sargento Parks, por exemplo, transcendem qualquer clichê possível e vão crescendo e se mostrando muito mais do que parecem a princípio. Na verdade, todo o livro em si vai crescendo no leitor à medida que a história avança, um tanto lenta e filosófica no início, para depois virar uma montanha russa entremeada com momentos de tensão onde você se pega prendendo a respiração, como nas partes em que o grupo é caçado pelos Lixeiros ou os ataques de multidões de infectados que ameaçam o grupo.


No mito de Pandora, que guardava todos os dons e todos os males em sua caixa, após abri-la e deixar escapar tudo, ela só conseguiu manter uma coisa encerrada na caixa: a esperança. Carey usou uma metáfora nada sutil para esse mundo assolado por um mal imenso, e viver em uma situação dessas exige algo que muitos não seriam capazes de fazer: manter a esperança. Uma história tocante sobre o sentimento de proteção que se desenvolve por alguém querido, sobre afeto, crueldade e sensibilidade, A Menina Que Tinha Dons é surpreendente e merece não passar em branco. Caiam dentro dessa história sem ressalvas, mas não se esqueçam de passar o bloqueador E nas axilas, virilhas, rosto e braços, ou eles vão te encontrar pelo cheiro...






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