quarta-feira, 15 de março de 2017

ENCHEÇÃO DE LINGÜIÇA DO BEM #004 - "OS NOVE TRILHÕES DE NOMES DE DEUS", de Arthur C. Clarke






Esse post está mais para uma homenagem do que para um "Encheção de linguiça...", porque esse ano é o centenário de nascimento de Arthur C. Clarke. Bem, não vou me alongar quanto a quem foi Clarke porque o Ricardo C. já fez isso nesse post aqui. Essa foi a homenagem dele.


Clarke esperando pelo contato...

Segue agora a minha homenagem nesse post.

Publicado originalmente em 1967, "Os nove trilhões de nomes de Deus", esse é um conto que enfoca o velho diálogo ciência / religião. Foi publicado no Brasil em duas coletâneas: "Sobre o tempo e as estrelas" e "O outro lado do céu". Escrito em um fim de semana chuvoso, J. B. S. Haldane (geneticista e biólogo britânico comentou a respeito: "Você é uma das poucas pessoas vivas que escreveu algo original sobre Deus. Se você se propusesse a escrever uma hipótese teológica, você poderia ser um sério problema público!"


Então sem mais delongas, leiam esse excelente conto de um mestre da FC:





OS NOVE TRILHÕES DE NOMES DE DEUS


Arthur C. Clarke, 1967




O doutor Wagner conseguiu se conter. O negócio parecia lucrativo.

Depois disse:

- O seu pedido é um pouco desconcertante. Que eu saiba, é a primeira vez que um mosteiro tibetano faz encomenda de um calculador eletrônico. Não quero ser curioso, mas estava longe de pensar que semelhante instituição pudesse necessitar desta máquina. Posso perguntar-lhe em que deseja utilizá-la?

O lama ajeitou a saia da sua túnica de seda e pôs sobre a mesa a régua de calcular com a qual acabava de efetuar conversões libra-dólar.
- Com certeza. O calculador eletrônico tipo 5 pode fazer, segundo diz o catálogo, todas as operações matemáticas até 10 decimais. No entanto, o que me interessa são letras, não números. Vou lhe pedir portanto que modifique o circuito de saída de forma que imprima letras em vez de colunas de números.
- Não compreendo muito bem...
- Desde que a nossa instituição foi fundada, há mais de três séculos, que nos consagramos a um determinado trabalho. É um trabalho que pode parecer estranho e peço-lhe que me escute com a maior largueza de espírito.
- De acordo.
- É simples. Tentamos organizar a lista de todos os nomes possíveis de Deus.
- Perdão?
O lama continuou imperturbavelmente:
- Temos excelentes motivos para crer que todos esses nomes incluem quando muito nove letras do nosso alfabeto.
- E ocuparam-se disso durante três séculos?
- Sim. Tínhamos calculado que precisaríamos de quinze mil anos para terminar o trabalho.
O doutor deu um assobio de vencido, e disse um pouco atordoado:
- OK, agora compreendo porque deseja alugar uma das nossas máquinas. Mas qual é o objetivo da operação?
Durante um fração de segundo o lama hesitou e Wagner receou ter ofendido aquele estranho cliente que acabava de fazer a viagem Lassa - Nova York com uma régua de calcular e o Catálogo da Companhia dos Calculadores Eletrônicos na algibeira da sua túnica cor de açafrão.
- Chame isto de um ritual, se quiser - disse o lama -, mas é uma das bases fundamentais da nossa religião. Os nomes do Ser Supremo, como seja Deus, Júpiter, Jeová, Alá, etc., não passam de etiquetas feitas pelos homens. Certas considerações filosóficas, demasiado complexas para que as possa expor agora, deram-nos a certeza de que, entre todas as permutas e possíveis combinações de letras, se encontram os verdadeiros nomes de Deus. Ora, o nosso objetivo é descobri-los e escrevê-los todos.
- Já compreendo: Começaram por AAAAAAAAA, e acabarão por chegar a ZZZZZZZZZ.
- Simplesmente utilizamos o nosso alfabeto. Evidentemente que será fácil para você modificar a máquina de escrever elétrica, de forma que ela utilize o nosso alfabeto. Mas um problema mais importante será o de preparar os circuitos especiais de forma que eliminem antecipadamente as combinações inúteis. Por exemplo, nenhuma das letras deve aparecer mais de três vezes sucessivamente.
- Três? Quer dizer duas.
- Não. Três. Mas a explicação completa exigiria imenso tempo, mesmo se o senhor compreendesse a nossa língua.
Wagner disse precipitadamente:
- Claro, claro. Siga, por favor.
- Vai ser fácil para adaptar o calculador automático em função deste objetivo. Com um plano bem elaborado, uma máquina desse gênero pode trocar as letras umas a seguir às outras e imprimir um resultado. Desta forma - concluiu calmamente o lama -, aquilo que nos levaria ainda quinze milênios estará terminado em cem dias.
O doutor Wagner sentia que ia perdendo o sentido das realidades. Através das janelas do edifício, os ruídos e as luzes de Nova York perdiam a intensidade. Sentia-se transportado a um mundo diferente. Lá longe, no seu longínquo asilo montanhoso, geração após geração, os monges tibetanos há trezentos anos que elaboravam uma lista de nomes desprovidos de sentido... Não havia então limite para a loucura dos homens? Mas o doutor Wagner não devia deixar transparecer os seus pensamentos. O cliente tem sempre razão...
E respondeu:
- Não duvido que possamos modificar a máquina tipo 5, de forma a imprimir listas desse gênero. A instalação e a conservação é que mais me inquietam. Aliás, não será fácil enviá-la para o Tibete.
- Nós trataremos disso. As peças separadas têm dimensões suficientemente pequenas para serem transportadas por avião. De resto, foi esse o motivo por que escolhemos a máquina. Enviem as peças para a Índia, que nós nos encarregaremos do resto.
- Deseja contratar dois dos nossos engenheiros?
- Sim, para montarem e vigiarem a máquina durante cem dias.
- Vou mandar as instruções à direção do pessoal - disse Wagner enquanto escrevia no bloco de notas. - Mas restam duas questões a resolver...
Antes que tivesse podido terminar a frase, o lama tirou do bolso uma delgada folha de papel:
- Esta é a posição certificada da minha conta no Banco Asiático.
- Muito obrigado. Está muito bem... Mas, se me permite, a segunda questão é de tal maneira elementar que hesito em mencioná-la. Acontece muitas vezes esquecermos qualquer coisa evidente... Têm uma fonte de energia eléctrica?
- Temos um gerador a diesel elétrico de 50 KW de potência. Foi instalado há cinco anos e funciona bem. Facilita-nos a vida no convento. O compramos sobretudo para acionar os moinhos de orações.
- Ah!, sim, evidentemente, eu devia ter pensado nisso....


Do parapeito a vista era vertiginosa, mas habituamo-nos a tudo.
Tinham decorridos três meses e George Hanley já não se impressionava com os 600 metros em vertical que separavam o mosteiro do quadriculado dos campos da planície. Apoiado sobre pedras que o vento arredondara, o engenheiro contemplava com olhar triste as montanhas longínquas de que ignorava o nome. "A operação nome de Deus", como a batizara um humorista da Companhia, era sem dúvida a pior tarefa de louco em que jamais participara.
Semana após semana, a máquina tipo 5, modificada, cobrira milhares de folhas de uma terrível algaravia. Paciente e inexorável, o calculador reunira as letras do alfabeto tibetano em todas as combinações possíveis, esgotando série após série. os monges recortavam certas palavras à saída da máquina de escrever elétrica e colavam-nas com devoção em enormes registros. Dentro de uma semana acabariam.
Hanley ignorava quais seriam os obscuros cálculos que os tinham feito chegar à conclusão de que não deviam estudar conjuntos de dez, vinte, cem, mil letras, e nem pretendia sabê-lo. Nos seus pesadelos sonhava por vezes que o grande lama decidira bruscamente complicar um pouco mais a operação e que o trabalho continuaria até ao ano 2060. Aliás, aquele estranho homenzinho parecia perfeitamente capaz de o fazer. A pesada porta de madeira soou. Chuck vinha ter com ele ao terraço. Chuck fumava, como de costume, um charuto; tornara-se popular entre os lamas distribuindo-lhes "Havanas". Aqueles tipos podiam ser completamente amalucados - pensou Hanley -, mas não eram puritanos. As frequentes expedições à aldeia não tinham sido desprovidas de interesse...
- Ouça, George - disse Chuck -, vamos ter aborrecimentos.
- A máquina escangalhou?
- Não.
Chuck sentou-se sobre o parapeito. Era espantoso, pois habitualmente receava ter vertigens:
- Acabo de descobrir o objetivo da operação.
- Mas já o sabíamos!
- Sabíamos o que os monges queriam fazer, mas não sabíamos porquê.
- Bah!, são uns loucos...
- Escute, George, o velho acaba de me explicar. Eles crêem que assim que tenham escrito todos aqueles nomes (e segundo pensam são cerca de nove trilhões), o objetivo divino será atingido. A raça humana terá realizado a tarefa para que foi criada.
- Então, e depois? Esperam que nos suicidemos?
- Inútil. Quando a lista estiver terminada, Deus intervirá e será o fim.
- Quando terminarmos, será então o fim do Mundo?
Chuck teve um risinho nervoso:
- Foi o que eu disse ao velho. Ele olhou-me de uma forma estranha, como um professor olha para um aluno particularmente estúpido, e disse-me: "Oh, não será assim tão insignificante!..."
George refletiu um instante:
- É um sujeito que visivelmente tem uma idéia fixa, mas, mesmo assim, que importância tem isso? Nós já sabíamos que eram uns loucos.
- Sim. mas não vê o que pode acontecer? Se a lista fica pronta e se as trombetas do anjo Gabriel, versão tibetana, não tocam, eles podem decidir que é por nossa culpa. No fim das contas, era a nossa máquina que eles utilizavam. Não gosto disto...
- Entendo - disse lentamente George -, mas eu já vi tanta coisa! Quando era garoto na Louisiana, apareceu um pregador que anunciou o fim do Mundo para o próximo domingo. Houve centenas de pessoas que acreditaram nele. Alguns chegaram a vender as suas casas. Mas ninguém se enfureceu no domingo seguinte. As pessoas pensaram que ele apenas errara um pouco os cálculos, e muitas delas ainda acreditam nele.
- Caso não tenha percebido isso, chamo-lhe a atenção para o fato de que não estamos na Louisiana. Estamos os dois sozinhos, no meio de centenas de monges. Eu adoro eles, mas preferia estar longe quando o velho lama perceber que a operação falhou.
- Há uma solução. Uma pequena sabotagem inofensiva. O avião chega dentro de uma semana e a máquina acaba o trabalho dentro de quatro dias, à razão de 24 horas por dia. Basta começar a reparar qualquer coisa durante dois ou três dias. Se calcularmos bem, podemos estar lá em baixo, no aeroporto,quando o último nome sair da máquina.


Sete dias mais tarde, enquanto os pequenos pôneis das montanhas desciam o caminho em espiral, Hanley disse:
- Sinto um pouco de remorso. Não fujo por medo, mas porque me dá pena. Não gostaria de ver a cara daqueles pobres homens quando a máquina parar.
- Na minha opinião - disse Chuck -, eles desconfiaram que fugimos, o que os deixou indiferentes. Agora já sabem até que ponto a máquina é automática, e que não precisa de vigilância. E supõem que não haverá nenhum depois.
George voltou-se para trás e olhou.
Os edifícios do mosteiro apareciam em silhueta escura sobre o poente. De vez em quando brilhavam pequeninas luzes sob a massa sombria das muralhas, como as vigias de um navio singrando no mar. Lâmpadas elétricas colocadas sobre o circuito da máquina nº 5.
Que aconteceria ao calculador elétrico? - pensou George. - Na sua fúria e desapontamento os monges iriam destruí-lo? Ou então recomeçariam tudo?
Como se ainda estivesse lá, via o que naquele momento se passava sobre a montanha atrás das muralhas. O grande lama e os seus assistentes examinavam as folhas, enquanto alguns noviços recortavam os nomes barrocos e os colavam no enorme caderno. E tudo aquilo era feito em religioso silêncio. Só se ouviam as teclas da máquina, batendo no papel como se fosse chuva miúda. O próprio calculador, que combinava milhares de letras por segundo, estava completamente silencioso...
A voz de Chuck interrompeu o seu devaneio:
- Lá está ele! Que alegria ver isso!
Semelhante a uma minúscula cruz prateada, o velho avião de transportes DC3 acabava de pousar lá em baixo na pequena pista improvisada. Aquela visão dava vontade de beber um grande copo de whisky gelado. Chuck começou a cantar, mas depressa se calou. As montanhas não o encorajavam.
George consultou o relógio.
- Estaremos lá dentro de uma hora - disse. E acrescentou: - Acha que o cálculo já terminou?
Chuck não respondeu e George levantou a cabeça. Viu o rosto de Chuck muito branco, voltado para o céu.
- Olha - murmurou Chuck.
George, por sua vez, levantou os olhos.
Pela última vez, por cima deles, na paz das alturas, uma a uma as estrelas começavam a extinguir-se...





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