terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

ENCHEÇÃO DE LINGUIÇA DE CARNAVAL: "O BEBÊ DE TARLATANA ROSA", de João do Rio






ALALAÔ, GALERA!!!

De passagem aqui só para deixar um conto temático pros foliões da Zona Negativa. Seu autor: Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio. Esse repórter e escritor carioca do início do século XX, com seu estilo de prosa pré-modernista e bastante ácida para os padrões da época, foi o cronista do lado feio da cidade. Suas histórias mostram os vagabundos, os atormentados, as prostitutas, os marginalizados e o grotesco em geral, mas também os dândis e os barões, dentro dos salões nobres de clubes ilustres. O lado oculto, tanto da sociedade burguesa carioca, quanto dos terreiros e cortiços. Tudo com uma bela dose de realismo e repugnância.

João do Rio

Parte integrante do livro "Dentro da Noite", de 1910, em "O bebê de tarlatana rosa" acompanhamos Heitor de Alencar, um dândi (que é como seu bisavô chamava os plêiba) narrando a seus companheiros no clube social a respeito de uma incursão aos antros mais sórdidos possíveis de se visitar durante os quatro dias de carnaval, um flerte de carnaval que não saiu como o esperado, o reverso da luxúria, e fantasias que escondem bem mais do que gostaríamos de descobrir...

Então, muita atenção às bagunças no carnaval amiguinhos. Às vezes, a luxúria carnavalesca pode te levar a beijar um menino achando que é menina, ou vice versa. Mas lendo esse conto, vem à mente aquele velho ditado: nada está tão ruim que não possa piorar...

O quê? tá de ressaca e não consegue ler? 
As letras não param de se mexer na tela? 
Ok, então deixe o Abujamra declamar o conto pra você!




O BEBÊ DE TARLATANA ROSA
João do Rio, 1910


- Oh! uma história de máscaras! quem não a tem na sua vida? O carnaval só é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto... Francamente. Toda a gente tem a sua história de carnaval, deliciosa ou macabra, álgida ou cheia de luxúrias atrozes. Um carnaval sem aventuras não é carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura...
E Heitor de Alencar esticava-se preguiçosamente no divã, gozando a nossa curiosidade.
Havia no gabinete o barão Belfort, Anatólio de Azambuja de que as mulheres tinham tanta implicância, Maria de Flor, a extravagante boêmia, e todos ardiam por saber a aventura de Heitor. O silêncio tombou expectante. Heitor, fumando um gianaclis autêntico, parecia absorto.
- É uma aventura alegre? indagou Maria.
- Conforme os temperamentos.
- Suja?
- Pavorosa ao menos.
- De dia?
- Não. Pela madrugada.
- Mas, homem de Deus, conta! suplicava Anatólio. Olha que está adoecendo a Maria.
Heitor puxou um largo trago à cigarreta.
- Não há quem não saia no Carnaval disposto no excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase doentio é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem da ânsia e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível. Não há quem se contente com uma...
- Nem com um, atalhou Anatólio.
- Os sorrisos são ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas passam como arrepios de urtiga pelo ar. É possível que muita gente consiga ser indiferente. Eu sinto tudo isso. E saindo, à noite, para a pornéia da cidade, saio como na Fenícia saíam os navegadores para a procissão da Primavera, ou os alexandrinos para a noite de Afrodita.
- Muito bonito! ciciou Maria de Flor.
- Está claro que este ano organizei uma partida com quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco companheiros. Não me sentia com coragem de ficar só como um trapo no vagalhão de volúpia e de prazer da cidade. O grupo era o meu salva-vidas. No primeiro dia, no sábado, andávamos de automóvel a percorrer os bailes. Íamos indistintamente beber champagne aos clubes de jogo que anunciavam bailes e aos maxixes mais ordinários. Era divertidíssimo e ao quinto clube estávamos de todo excitados. Foi quando lembrei uma visita ao baile público do Recreio. - "Nossa Senhora! disse a primeira estrela de revistas, que ia conosco. Mas é horrível! Gente ordinária, marinheiros à paisana, fúfias do pedaços mais esconsos da rua de S. Jorge, um cheiro atroz, rolos constantes..." - Que tem isso? Não vamos juntos?"
Com efeito. Íamos juntos e fantasiadas as mulheres. Não havia o que temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era desolação com pretas beiçudas e desdentadas esparrimando belbutinas fedorentas pelo estrado da banda militar, todo o pessoal de azeiteiros das ruelas lôbregas e essas estranhas figuras de larvas diabólicas, de íncubos em frascos de álcool, que têm as perdidas de certas ruas, moças, mas com os traços como amassados e todas pálidas, pálidas feitas de pasta de mata-borrão e de papel-arroz. Não havia nada de novo. Apenas, como o grupo parara diante dos dançarinos, eu senti que se roçava em mim, gordinho e apetecível, um bebê de tarlatana rosa. Olhei-lhe as pernas de meia curta. Bonitas. Verifiquei os braços, o caído das espáduas, a curva do seio. Bem agradável. Quanto ao rosto era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda como se ofertando. Só postiço trazia o nariz, um nariz tão bem-feito, tão acertado, que foi preciso observar para verificá-lo falso. Não tive dúvida. Passei a mão e preguei-lhe um beliscão. O bebê caiu mais e disse num suspiro: - ai que dói! Estão vocês a ver que eu fiquei imediatamente disposto a fugir do grupo. Mas comigo iam cinco ou seis damas elegantes capazes de se debochar mas de não perdoar os excessos alheios, e era sem linha correr assim, abandonando-as, atrás de uma freqüentadora dos bailes do Recreio. Voltamos para os automóveis e fomos cear no clube mais chic e mais secante da cidade.
- E o bebê?
- O bebê ficou. Mas no domingo, em plena Avenida, indo eu ao lado do chauffeur; no burburinho colossal, senti um beliscão na perna e urna voz rouca dizer: "para pagar o de ontem". Olhei. Era o bebê rosa, sorrindo, com o nariz postiço, aquele nariz tão perfeito. Ainda tive tempo de indagar: aonde vais hoje?
- A toda parte! respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso.
- Estava perseguindo-te! comentou Maria de Flor.
- Talvez fosse um homem... soprou desconfiado o amável Anatólio.
- Não interrompam o Heitor! fez o barão, estendendo a mão.
Heitor acendeu outro gianaclis, ponta de ouro, continuou:
- Não o vi mais nessa noite e segunda-feira não o vi também. Na terça desliguei-me do grupo e cai no mar alto da depravação, só, com uma roupa leve por cima da pele e todos os maus instintos fustigados. De resto a cidade inteira estava assim. É o momento em que por trás das máscaras as meninas confessam paixões aos rapazes, é o instante em que as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e todos nós a achamos inútil, a honra uma caceteação, o bom senso uma fadiga. Nesse momento tudo é possível, os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse momento há um riso que galvaniza os sentidos e o beijo se desata naturalmente.
Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no carnaval.
- A quem o dizes!... suspirou Maria de Flor.
- Mas eu estava sem sorte, com a guigne, com o caiporismo dos defuntos índios. Era aproximar-me, era ver fugir a presa projetada. Depois de uma dessas caçadas pelas avenidas e pelas praças, embarafustei pelo S. Pedro, meti-me nas danças, rocei-me àquela gente em geral pouco limpa, insisti aqui, ali. Nada!
- É quando se fica mais nervoso!
- Exatamente. Fiquei nervoso até o fim do baile, vi sair toda gente, e saí mais desesperado. Eram três horas da manhã. O movimento das ruas abrandara. Os outros bailes já tinham acabado. As praças, horas antes incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiantes enfumadas dos fogos de bengala, caiam em sombras - sombras cúmplices da madrugada urbana. E só, indicando a folia, a excitação da cidade, um ou outro carro arriado levando máscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas calçadas fofas de confete. Oh! a impressão enervante dessas figuras irreais na semi-sombra das horas mortas, roçando as calçadas, tilintando aqui, ali um som perdido de guizo! Parece qualquer coisa de impalpável, de vago, de enorme, emergindo da treva aos pedaços... E os dominós embuçados, as dançarinas amarfanhadas, a coleção indecisa dos máscaras de último instante arrastando-se extenuados! Dei para andar pelo largo do Rocio e ia caminhando para os lados da secretaria do interior, quando vi, parado, o bebê de tarlatana rosa.
Era ele! Senti palpitar-me o coração. Parei.
- "Os bons amigos sempre se encontram" disse.
O bebê sorriu sem dizer palavra. Estás esperando alguém? Fez um gesto com a cabeça que não. Enlacei-o. - Vens comigo? Onde? indagou a sua voz áspera e rouca. - Onde quiseres! Peguei-lhe nas mãos. Estavam úmidas mas eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um beijo. Ela recuou. Os meus lábios tocaram apenas a ponta fria do seu nariz. Fiquei louco.
- Por pouco...
- Não era preciso mais no Carnaval, tanto mais quanto ela dizia com a sua voz arfante e lúbrica: - "Aqui não!" Passei-lhe o braço pela cintura e fomos andando sem dar palavra. Ela apoiava-se em mim, mas era quem dirigia o passeio e os seus olhos molhados pareciam fruir todo o bestial desejo que os meus diziam. Nessas fases do amor não se conversa. Não trocamos uma frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu coração e o sangue em desespero. Que mulher! Que vibração! Tínhamos voltado ao jardim. Diante da entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua escura e sem luz. Ao fundo, o edifício das Belas-Artes era desolador e lúgubre. Apertei-a mais. Ela aconchegou-se mais. Como os seus olhos brilhavam! Atravessamos a rua Luís de Camões, ficamos bem embaixo das sombras espessas do Conservatório de Música. Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor vagamente ruça com a treva espancada um pouco pela luz dos combustores distantes. O meu bebê gordinho e rosa parecia um esquecimento do vicio naquela austeridade da noite. - Então, vamos? indaguei. - Para onde? - Para a tua casa. - Ah! não, em casa não podes... - Então por aí. - Entrar, sair, despir-me. Não sou disso! - Que queres tu, filha? É impossível ficar aqui na rua. Daqui a minutos passa a guarda. - Que tem? - Não é possível que nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas. Depois, às quatro tens que tirar a máscara. - Que máscara? - O nariz. - Ah! sim! E sem mais dizer puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braços, beijei-lhe o colo, beijei-lhe o pescoço. Gulosamente a sua boca se oferecia. Em torno de nós o mundo era qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe o lábio.
Mas o meu nariz sentiu o contato do nariz postiço dela, um nariz com cheiro a resina, um nariz que fazia mal. - Tira o nariz! - Ela segredou: Não! não! custa tanto a colocar! Procurei não tocar no nariz tão frio naquela carne de chama.
O pedaço de papelão, porém, avultava, parecia crescer, e eu sentia um mal-estar curioso, um estado de inibição esquisito. - Que diabo! Não vás agora para casa com isso! Depois não te disfarça nada. - Disfarça sim! - Não! procurei-lhe nos cabelos o cordão. Não tinha. Mas abraçando-me, beijando-me, o bebê de tarlatana rosa parecia uma possessa tendo pressa. De novo os seus lábios aproximaram-se da minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava o meu, o nariz que não era dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e de chofre agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinante - uma caveira com carne...
Despeguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. - Perdoa! Perdoa! Não me batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então, aproveito, ouviste? aproveito. Foste tu que quiseste...
Sacudi-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade de cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da Luxúria... Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semitreva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo o mundo que a beijara? Não resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, os queixos batendo, ardendo em febre.
Quando parei à porta para tirar a chave, é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebê de tarlatana rosa...
Heitor de Alencar parou, com o cigarro entre os dedos, apagado. Maria de Flor mostrava uma contração de horror na face e o doce Anatólio parecia mal. O próprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas de suor. Houve um silêncio agoniento. Afinal o barão Belfort ergueu-se, tocou a campainha para que o criado trouxesse refrigerantes e resumiu:
- Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem não tem do Carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante.
E foi sentar-se ao piano.






BOM CARNAVAL!



quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

ED & LORRAINE WARREN: DEMONOLOGISTAS, ou "Como saber a diferença entre fantasma, aparição, poltergeist e demônio ainda vai salvar sua vida um dia!"

Por EDUARDO CRUZ








"Um fantasma pode assustá-lo", responde Ed. "Um espírito demoníaco vai assustá-lo - e acabará ameaçando a sua vida. Nos estágios iniciais, os fenômenos associados a espíritos tanto humanos quanto inumanos podem ser os mesmos. Ambos os tipos de espírito vão manipular o ambiente físico na tentativa de fazer com que a presença deles seja notada. A diferença é a natureza da atividade associada a cada tipo. Em regra, fantasmas farão coisas à casa, enquanto espíritos demoníacos farão coisas às pessoas. Um tenta assustá-lo para que você saia da casa. O outro tenta assustá-lo para que você enlouqueça (...)"


Sabem, tenho uma confissão a fazer. Nada mais justo, depois desse tempo todo recebendo vocês aqui na Zona, que eu compartilhe alguma intimidade, algo de particular com vocês. Afinal, vocês já são de casa. Então lá vai: Eu tenho uma espécie de compulsão bizarra (não, não é nada sexual, tratem de manter essa mãozinha aí quieta!). Algumas pessoas achariam que seria o caso de, no mínimo, me encher de remédios por conta disso, para que eu tivesse uma vida "normal". Mas é um impulso que me persegue desde que senti pela primeira vez ainda criança, quando ouvia algumas histórias, assistia a certos filmes ou realizava certas "brincadeiras", como o jogo do copo

Eu gosto de sentir medo.

Não qualquer tipo de medo, como "Será que hoje vou ser assaltado no ônibus?" ou "E se alguma coisa caísse do alto desse prédio em construção direto na minha cabeça?". 
Não. Nada tão mundano assim.
Na verdade, só o que satisfaz essa minha compulsão é um pavor intenso, irracional, e de preferência impulsionado por um fato ou evento que a mente racional não consiga explicar. Algo não mensurável ou palpável. Algo como estar sozinho em casa, acordado de madrugada e ouvir barulhos estranhos, ou ter que passar na frente do cemitério à noite. Ah sim, e tem também as histórias de possessão demoníaca.

A possessão demoníaca é algo impressionante e assustador, acredite você ou não na autenticidade do fenômeno. A idéia de ser arrebatado e perder o controle de seu próprio corpo para uma inteligência supostamente autônoma e externa é algo que apavora qualquer pessoa normal, independentemente de qual religião ela pratique, ou até mesmo se não tem nenhum tipo de crença. Muitos preferem não acreditar que algo tão sinistro costuma acontecer, e que nos tempos atuais não há espaço para crenças retrógradas em fantasmas ou espíritos demoníacos, que tudo tem uma explicação racional, científica. Mas não o casal Warren. Eles sabiam bem que a coisa não funcionava desse jeito, e que a realidade que se esconde por baixo da superfície do dia a dia é bem mais sinistra.


Lorraine e Ed Warren

Edward (falecido em 2006) e Lorraine Warren têm investigado estas ocorrências paranormais/sobrenaturais desde a década de 40, e fundaram em 1952 a The New England Society For Psychic Research (A Sociedade de Pesquisas Psíquicas da Nova Inglaterra) para se aprofundarem em suas pesquisas do oculto, e assim se tornaram os primeiros "Caçadores de fantasmas" do século XX. Lorraine é uma médium sensitiva, ou sejE, ela consegue detectar energias no ambiente e determinar se se trata de fato de um espírito de uma pessoa desencarnada ou algo mais sinistro. Edward é um demonologista, que seria algo como um expert em espíritos não humanos. Segundo os Warren, as entidades sobrenaturais se dividem em espíritos de pessoas que um dia foram vivas e entidades espirituais que nunca tiveram uma existência física e existem com o único intuito de se expressarem através de manifestações negativas contra pessoas, incluindo, em último caso a possessão demoníaca. Os Warren os classificavam como "espíritos demoníacos inumanos", no vocábulo popular, "demônios". "Estudar o que esse espírito é, o que ele pode fazer e o que sua existência pode significar é, em última análise, o trabalho e a incumbência do demonologista", nas palavras de Ed. Um demonologista precisa saber identificar o espírito demoníaco, e se for o caso, auxiliar um clérigo ou sacerdote, provendo as condições para que o exorcismo da entidade do local transcorra sem atribulações. O que, pelo que podemos notar em detalhes de alguns casos ao longo da carreira dos Warren (os números de casos assistidos pelo casal varia de 3.500 a 10.000 ocorrências registradas!), nem sempre é possível, e muitas vezes a coisa fica feia. 

Entre as ocorrências investigadas pelo casal, algumas se destacam pela proporção da notoriedade, chegando mesmo a terem sido amplamente divulgadas pela imprensa na época, como o caso Amityville, do qual até nossos avós já ouviram falar, o caso da boneca Anabelle, a assombração de Enfield, entre outros casos escabrosos. Tanta atividade que acabou despertando a atenção de Hollywood e vários desses casos foram adaptados para cinema, em filmes como "Invocação do mal", "Invocação do mal 2", "Annabelle", e uma dúzia de filmes sobre o que diabos aconteceu em Amityville


"(...) como afirma Ed: "Eu e outras testemunhas já vimos as feições de pessoas possuídas se transformarem naquelas de um lobo, de um porco e, mais comumente, de um gorila. Já vi indivíduos possuídos assumirem as feições dos mortos, bem como se transformarem em coisas que poderiam ser descritas apenas como grotescas e macabras. E todas essas mudanças são físicas. A pele e os ossos realmente mudam de forma, depois voltam ao normal, quando o episódio de possessão passa."




Alguns dos casos que o narrador de inglês ruim mostra nesse vídeo 
constam no livro, e com detalhes suficientes para tirar o sono...

Claro que uma carreira tão atípica e tão extensa gera muita informação, a longo prazo. Além de um arquivo composto de registros em escrito, testemunhos, reportagens, milhares de fotos de aparições, gravações em vídeo e fitas com milhares de horas de gravações de vozes de espíritos e pessoas sob possessão demoníaca, os Warren acumularam ao longo de sua carreira objetos através dos quais as pessoas fizeram uso para inadvertidamente ou irresponsavelmente estabelecer contato com entidades demoníacas, trazendo o problema para dentro de suas próprias casas. O tal "Museu do Oculto" dos Warren é uma parafernália sem fim composta de tabuleiros de Ouija, adagas rituais, velas negras, livros de magia negra, máscaras, capas cerimoniais, bolas de cristal, estatuetas de demônios, um caixão, e até a própria Annabelle. Enfim, tudo que se puder imaginar que eles levam embora da cena onde ocorreu a atividade sobrenatural/demoníaca provocada por meros curiosos, na maioria das vezes. Cada objeto é um caso, e conta uma história. Alguns dos objetos guardados no museu são tão impregnados de energia negativa que o simples ato de tocá-los pode desencadear uma manifestação ou até mesmo uma possessão. Os Warren mantém os objetos em sua custódia para que não caiam em mãos incautas novamente. Esse é o acervo do museu.



"Se há uma mensagem que Ed e Lorraine Warren tentam transmitir com clareza é que o oculto é basicamente um acidente esperando para acontecer."


Um tour pelo "museu do Oculto" do casal Warren.
Toque em qualquer objeto e leve como souvenir para casa uma entidade agarrada em você.
Talvez o único museu que não desperte interesse de ladrões.



Em 1980 saía nos EUA o livro "The Demonologist", onde o leitor poderia acompanhar a rotina dos Warren e conhecer mais a fundo os detalhes dos casos pavorosos citados acima, investigados pelo casal: assombrações, possessões... enfim, o dia a dia normal do casal Warren rs. Infelizmente, como muitos outros livros relevantes mas ignorados pelas editoras, não sei por qual razão, "The Demonologist" nunca havia sido lançado no Brasil. Até que no fim do ano passado a Darkside Books fez bonito de novo e o lançou aqui, com o título "Ed & Lorraine Warren: Demonologistas". A edição segue o padrão gráfico muito bem elaborado e sempre alinhado com a temática do livro, um padrão da editora da caveirinha, que consegue lançar bons livros com belíssimas capas. O design do livro simula uma encadernação antiga e desgastada, e conseguiu enganar minha tia, que viu a capa e me perguntou se "Eles mandaram o livro assim estragado pra você???". Então, ao Retina 78, responsáveis pela capa e projeto gráfico da edição, deixo meu mais sincero "Missão cumprida!", amigos ;>)


Projeto gráfico impecável da Darkside Books



Essa é Annelise Michel, possuída por 6 entidades diferentes:
Hitler, Caim, Nero, Fleischmann, Judas e Lúcifer, como cada uma das vozes se denominou. 

Claro, também não estou ignorando as montanhas de evidências que investigadores céticos levantaram contra os Warren ao longo dos anos, afirmando que eles não passavam de charlatões e embusteiros. Nesse campo de estudo, há décadas percebe-se uma constante: todos aqueles que se propõem a comprovar a autenticidade dessas ocorrências conseguem comprová-la, e aqueles  que se propõem a comprovar que causas sobrenaturais não existem também o conseguem. O impasse permanece. Por isso, na pior das hipóteses, "Ed & Lorraine Warren: Demonologistas" é um livro que agrada aos que crêem e também aos céticos, basta decidir lê-lo como um bom terror, ou como um manual de proteção, dependendo da sua inclinação à credulidade ou ceticismo. O livro funciona bem das duas formas. Um excelente livro de terror, daqueles que você lê antes de dormir, mas que vai te fazer hesitar em levantar no meio da madrugada para uma ida ao banheiro. Ótimo também para levar quando for acampar sozinho, ou para passar o tempo naquela viagem de semana santa a parentes que moram no interior, para ler com a janela aberta enquanto espera o sono chegar. Isto é, se você é como eu e gosta de sentir um medo saudável do desconhecido. Agora me dêem licença um instante, vou ali no quarto ao lado verificar porque minha mulher começou a falar aramaico com uma voz cavernosa e está batendo boca com minha sobrinha de 3 anos, que por sua vez está agarrada na parede como uma aranha e falando em grego igual a um velho com asma...


"Qual é o pior caso que Ed e Lorraine já investigaram?
"Isso é uma coisa que eu nunca, nunca falo", admite Ed, ficando de repente muito sério. "O caso foi quase o nosso fim, isso eu garanto. Nós nos vimos levados a um lugar fora deste mundo, um lugar que você nunca acreditaria existir, mesmo que eu o descrevesse. Cada minuto, cada segundo daquelas longas horas foi tão inacreditável, tão incompreensivelmente horrível, que acho que agora conheço o verdadeiro significado de inferno e o valor da vida na Terra."



Um áudio de uma das entidades residentes na casa de Enfield falando com o investigador. 
Ouça às 3 da manhã para conseguir escutar melhor. Boa noite.







Ficou com medinho???
Então, quem você vai chamar???





segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

AS FONTES DO PARAÍSO, de Arthur C. Clarke ou “Um Elevador Para as Estrelas"



Por RICARDO CAVALCANTI






Nesse ano se comemora o centenário do nascimento de Sir Arthur C. Clarke (falecido em 2008). Seu nome é muito atrelado à ficção científica, muito por conta de seus livros que abordam o assunto, ou (indiretamente) pela adaptação cinematográfica de 2001: Uma Odisseia no Espaço - imortalizada no cinema por Stanley Kubrick. No entanto, ele foi muito mais que um simples escritor.




Várias vezes premiado por suas obras, é até hoje um dos nomes mais respeitados, não só na literatura, mas também no campo da astronomia, sendo inclusive nomeado presidente do British Interplanetary Society (uma espécie de NASA da terra da rainha). É considerado também o pai da comunicação por satélites, por ter definido o conceito que proporcionou o desenvolvimento dessa tecnologia, que é utilizada até hoje. 

O autor foi de extrema importância em boa parte do êxito dos Estados Unidos na corrida espacial. Além disso, o presidente JFK foi convencido por um de seus cientistas de que o homem poderia chegar à lua usando como argumento de convencimento um dos livros de Clarke: “The Exploration of Space”.





Arthur C. Clarke era, além de tudo, um visionário (não no sentido Zack Snyder, é claro...). Em uma entrevista de 1974, falava com naturalidade - e uma certeza espantosa - exatamente como seria o futuro em que as pessoas se comunicariam por computadores pessoais, tendo acesso a toda informação que precisassem e teriam acesso a facilidades que hoje, para nós, já estão inseridas em nosso dia a dia.




Caso acredite que nesse vídeo anterior, suas previsões foram apenas um chute de sorte, gaste um pouco do seu inglês nórdico e veja como ele, em 1960, achava que seria o futuro.



Fico imaginando o quanto soava absurdo falar em inteligência artificial nos anos 60, por exemplo. Algumas dessas teorias já fazem parte da nossa realidade, enquanto outras ainda são episódios de Black Mirror. Ou será que não?





No livro "As Fontes do Paraíso", lançado aqui pela Aleph, recebemos mais uma aula de toda sua capacidade imaginativa e argumentativa ao descrever o futuro.

A Terra agora já possui colônias em Marte, na Lua e em Mercúrio. Mesmo assim, o alto custo e a poluição produzidos pelos foguetes espaciais acabam limitando uma exploração ainda maior do espaço. Na trama, acompanhamos o projeto de Vannevar Morgan que, depois de ser o responsável pela construção da chamada Ponte Suprema (também chamada de Ponte de Gibraltar, a maior já feita pelo homem, com quinze quilômetros de extensão, ligando a Europa ao continente africano), achou que havia chegado a hora de construir um novo caminho; dessa vez, em direção ao espaço. A Torre Orbital, um sistema como um metrô vertical (ou elevador), que serviria como estilingue cósmico, enviando cargas para a Lua e para os planetas sem o uso de foguete.


"Se as leis da mecânica celeste possibilitam a um objeto permanecer fixo no céu, não seria possível baixar um cabo até a superfície... de modo a criar um sistema de elevadores ligando a Terra ao espaço?”





Acompanhamos a construção da Torre Orbital desde sua concepção e elaboração, até o seu pleno funcionamento. Mesmo com a reputação de grande projetista da “Ponte Suprema”, Vannevar Morgan precisa convencer determinados grupos a acreditarem em seu projeto, passando pela busca de investidores que pudessem “comprar” a idéia, conversas e negociações sobre o local onde seria construída a base do elevador na terra, propostas para que, ao invés da terra, o elevador fosse construído em Marte, além de uma boa dose de demonstração de força dos interesses políticos e econômicos, inclusive, propondo algo como “um grande pacto para estancar a sangria”:

 " - Definitivamente, precisamos de uma decisão judicial da Corte Mundial. Se a Corte decidir que é uma questão de interesse público inapelável, nossos amigos reverendos terão de sair de lá... mas, se eles decidirem ser teimosos, haverá uma situação desagradável. Talvez você devesse enviar um pequeno terremoto, para ajudá-los a se decidir."

O elevador poderia ser utilizado também para fins de turismo, proporcionando a milhares de pessoas a possibilidade de contemplar a terra diretamente da estratosfera (está aí uma coisa que eu gostaria muito de fazer!).

Durante o desenvolvimento do projeto, consegue-se estabelecer contato com uma civilização alienígena: uma sonda espacial autônoma chamada Sideronauta, que colhe informações sobre civilizações por todo o universo. Chegando por aqui, consegue decodificar com facilidade a linguagem terrestre e rapidamente se torna capaz de entender e analisar que tipo de civilização somos, estando em condições de discutir sobre nossa filosofia, nossos valores e sobre as diversas religiões do mundo.

O local perfeito para ser a base da Torre Orbital na Terra é no alto da Montanha Sagrada, onde existe um mosteiro budista. Este local realmente existe e se chama Sri Pada (ou Pico de Adão), assim como Sigiriya, chamada no livro de Yakkagala. Ambos localizam-se no Sri Lanka, local onde o autor viveu por muitos anos, até o fim da vida.


Sri Pada, a Montanha Sagrada

Sigiriya


A riqueza de detalhes com que as situações e os procedimentos são descritos nos deixam na dúvida se ele não está falando de algo já existente. O leitor fica ciente de todos os procedimentos como se estivesse ali ao lado dos protagonistas do livro. Mas não esperem por naves em combate pelo espaço, tiros de raio laser ou lutas com sabres de luz. Ao invés disso, o autor não só nos brinda com toda sua capacidade de imaginar e nos explicar um mundo muito mais avançado tecnologicamente, mas também explora aspectos mais humanos, como a relação do homem com as suas crenças religiosas, negociações comerciais e uma boa dose de ego e vaidade.

O homem é um ser que sempre procura romper limites. Buscar o impossível através de grandes construções e desenvolvimentos tecnológicos fazem parte de sua natureza. Ao longo da história da humanidade vemos desde grandes obras que desafiam nossa compreensão - como as pirâmides do Egito, o Colosso de Rodes, a muralha da China - até avanços mais recentes como a aviação, submarinos e sondas espaciais. O homem prova sempre que o limite não é nada além de algo a ser ultrapassado. Se pensarmos nos saltos tecnológicos dos últimos vinte anos e compararmos com os dos vinte anos anteriores, podemos perceber que avançamos a uma velocidade espantosa.
Ao ler As Fontes do Paraíso, talvez lhe soe como algo irreal por ser “ficção científica demais” (provavelmente, a mesma sensação que as pessoas tiveram ao ouvi-lo falar nos vídeos acima), mas para o desenvolvimento da história, o autor se baseou num conceito teorizado pelo engenheiro russo Yuri Arstutanov nos anos 60, em que um cabo partindo do solo, é içado ao espaço dando acesso a uma plataforma flutuante que gira na órbita da terra (Yuri Arstutanov é mencionado no livro), o chamado “Elevador Espacial”. Com ele, seria possível chegar ao espaço sem a necessidade de um foguete, além de viabilizar o transporte de toneladas de equipamentos para o espaço e com um custo muito reduzido. Em "Guerra do Velho", o autor John Scalzi cria um elevador orbital semelhante, o "pé de feijão", muito provavelmente uma homenagem a Arthur C. Clarke.

Segundo o autor, o projeto da Torre Orbital é uma realidade. Caso não tivesse ocorrido o acidente com o ônibus espacial Challenger em 1986, o desenvolvimento dessa tecnologia já estaria bastante adiantada e teriam ocorrido suas primeiras tentativas para colocá-la em prática. Além disso, Arthur C. Clarke discursou no congresso da Federação Astronáutica Internacional em 1979, defendendo a ideia de que o Elevador Espacial não era uma apenas uma fantasia, mas poderia ser considerada uma “chave para o universo”.

Agora apertem os cintos e embarquem no elevador panoramico com a melhor vista possível, e apreciem o próximo andar; onde  encontraremos o céu, a lua e as estrelas.



quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

SUPERDEUS, de Warren Ellis e Garrie Gastonny, ou "O MEU Deus desce a porrada no seu Deus!!!"







Por EDUARDO CRUZ

E finalmente chegamos a Superdeus, fechando a trilogia de mini séries (as outras duas partes são Verão Negro e Herói Nenhum, sem ligação entre si, unidas apenas pelo tema em comum: Superhumanidade, política e religião) de desconstrução do arquétipo do super herói de Warren Ellis, a terceira de três mini séries publicadas pela editora americana Avatar Press entre 2007 a 2009. Como se as mini séries anteriores não fossem bombásticas o suficiente, com a violência em profusão, presidentes mortos e muitos comentários ácidos sobre política internacional, em Superdeus, Ellis sente que pode ir além e ofender ainda mais gente elevando o super herói a um nível divino. Literalmente. Nas palavras do próprio Ellis:


"Verão Negro era sobre super humanos que eram humanos demais. Herói Nenhum era sobre super humanos que eram inumanos. Superdeus é sobre super humanos que não são mais humanos em nenhum aspecto, mas algo mais. O apêndice de uma trilogia temática, se vocês preferirem." 

Warren Ellis

Em Superdeus, percorremos um século XX que aconteceu de forma um pouco diferente do nosso em um detalhe: a corrida armamentista se deu não com o desenvolvimento e produção de armamento termonuclear, e sim com a criação de seres superpoderosos, divindades tecnológicas de imenso poder, no clima paranóico que pontuou os anos da Guerra Fria

Narrada do ponto de vista de Simon Reddin, um cientista britânico sentado em meio às ruínas de uma devastada Londres pós apocalíptica, Reddin faz um relato oral a Tommy, um cientista Americano abrigado em um bunker do outro lado do oceano. Reddin conta a Tommy que tudo começou em 1955, quando o governo britânico enviou 3 astronautas ao espaço em uma nave experimental com o intuito de estudar os efeitos da radiação espacial no corpo humano. Quando o foguete retorna à Terra, os cientistas descobrem que os três astronautas foram fundidos em um único organismo, graças aos esporos de um fungo alienígena. A entidade é batizada de Morrigan Lugus,  em homenagem a duas divindades celtas (mas peraí, uma divindade tríplice? o cristianismo também tem uma dessas!). 


O nada sutil Morrigan Lugus
A posse de Lugus pelo governo Britânico faz com que outras nações corram atrás do prejuízo para desenvolverem seus próprios programas de super humanos. Tem início aí a corrida armamentista: Os EUA criam Jerry Craven, um ciborgue projetado a partir dos restos do corpo de um piloto da força aérea (numa referência maneiríssima ao seriado O Homem de 6 milhões de dólares), enquanto a Rússia cria Novaya Goraj, com mais ou menos a mesma matéria prima: um cosmonauta morto. Nações como Irã, China e até mesmo Venezuela também criam seus próprios "Superdeuses". E sim, alguns vão acabar em rota de colisão...


Mesma guerra fria, armamentos diferentes

O estopim do conflito se dá no século XXI com a ativação de Krishna, um superser indiano. Krishna é construído com tecnologia de ponta, possui controle absoluto sobre matéria e energia, e é governado por um programa simples de inteligência artificial cuja diretriz principal é "salvar a Índia". Levando a diretriz a uma lógica extrema, Krishna resolve os problemas de poluição e superpopulação da Índia dizimando a população e destruindo o país. O caos na Índia leva seu vizinho Paquistão a lançar seu arsenal nuclear inteiro contra Krishna, mas Krishna simplesmente devolve o ataque, obliterando o Paquistão. A partir daí, outras nações ativam seus "protetores" e as consequências são devastadoras.


Krishna, um Doutor Manhattan de calças!

Em Superdeus, Ellis aborda um tema que poucas histórias de Super-Heróis chegam a tocar: a ligação entre entidades superpoderosas dos quadrinhos com a parte da natureza humana que impele a adoração a divindades. Na HQ, o Dr. Reddin divaga a respeito da compulsão psicológica que o ser humano possui, de criar e venerar deuses para protegê-lo, um hábito que vem sendo repetido ao longo de toda a história humana. 



Dajjal, tão poderoso que consegue enxergar através da quarta parede!

Matreya, da China, pode manipular carne humana para criar formas complexas e aterradoras!

A maneira como Ellis opta por contar a história aqui lembra bastante outro trabalho seu, Ministério do Espaço, que nos mostra uma história alternativa a respeito de como se deu a corrida espacial. Na realidade alternativa de Ministério do Espaço, a primeira nação a ter um programa espacial plenamente desenvolvido é a Inglaterra, e não os pólos Rússia - EUA, e temos uma história contada a partir da perspectiva dos britânicos. Mais uma ótima história do Ellis para você formar seu próprio top 10 de histórias dele. Como eu cansei de dizer, difícil mesmo é elencar só 10 HQs do Ellis para fazer uma lista... 


Ministério do espaço

Desconstrução do mito do super herói também não é nenhuma novidade no currículo de Ellis. Os mais velhacos vão lembrar da mini série Ruínas, que ele escreveu para a Marvel, onde ele reavalia vários heróis da editora a partir de uma ótica muito mais cruel e cínica. Ruínas está disponível para baixar nesse link.

Abordando temas como religião, a natureza destrutiva do ser humano, humanismo e transhumanismo, Superdeus é um pouco diferente na levada narrativa em relação a Verão Negro e Herói Nenhum, que têm uma ritmo mais análogo a um blockbuster, frenético e violento. Mas essa impressão, em minha opinião, se deve bastante à arte de Garrie Gastonny, que não é um artista ruim, mas em Superdeus está bastante inferior a Juan Jose Ryp, artista das mini séries anteriores. Gastonny está apenas razoável, mas tudo bem. Poderiam ter entregue isso nas mãos de algum outro artista bem ruim, como (insira desenhista ruim aqui) ou (insira desenhista REALMENTE ruim de doer aqui!), por exemplo. Teria sido ótimo se Ryp também fosse responsável pela arte de Superdeus. Ficaria uniforme, mas possivelmente ele não pôde assumir por causa do maior arquivilão de um artista de HQs: os prazos. De qualquer maneira, pra quem é acostumado com o padrão "Vertigueiro" de histórias em quadrinhos, vai ser fácil abstrair isso e mergulhar na excelente história. 

Warren Ellis fez seu próprio Watchmen. Ele achou necessário, após a virada do século, desconstruir o conceito de super herói, adequando-o ao o zeitgeist atual - onde a razão vem sendo cada vez mais ferozmente rejeitada em favor do misticismo, fundamentalismo e fanatismo - e se deu três mini séries conectadas conceitualmente para realizar a tarefa. Foi muito bem sucedido na empreitada. Nos mostrou que a pretensão do ser humano - extremamente imperfeito por natureza - em criar Deuses para salvá-lo de si mesmo utilizando a ciência se mostrou um equívoco fatal, e essa contradição foi a semente de sua própria ruína. 

Não aprendemos nada lendo Frankenstein.  

Agora, me dê a mão e vamos juntos à extinção.  


Toma uma referência bíblica aí, fera!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

HERÓI NENHUM, de Warren Ellis e Juan Jose Ryp, ou "Heroísmo: agora também em xarope e pastilhas"







Por EDUARDO CRUZ

Dando sequência à trilogia da superhumanidade de Warren Ellis (Já comentamos sobre a primeira mini série, Verão Negro aqui), um conjunto de três mini séries sem nenhuma relação entre si, e que partilham de apenas uma temática em comum entre elas: a condição super-humana e seus desdobramentos e contrastes dentro de vários aspectos da sociedade humana, sobretudo no campo da política e também na religião. Uma tentativa de abordagem realista sobre seres com poderes sobre-humanos interagindo no "mundo real". Herói Nenhum foi originalmente lançada em 8 partes (das edições #0 à #7) entre 2008 e 2009 pela Avatar Press, editora que publica bastante material autoral de Warren Ellis, Garth Ennis, Alan Moore, entre outros distintos roteiristas que fizeram parte da já histórica Invasão Britânica.







Assim como em Verão Negro, podemos resumir o mote filosófico da história em apenas uma pergunta, a pergunta que Ellis joga pro leitor logo na capa da HQ:
"O QUANTO VOCÊ QUER SER UM SUPER-HUMANO?"
Herói Nenhum se passa em um mundo onde super-humanos existem desde os anos 60 nos EUA, época da efervescência da contracultura, das lutas por igualdade e pelos direitos civis. O grupo conhecido como "Os Niveladores" surge para proteger a população da violência policial e do crime de rua, em crescimento desde o fim da guerra do Vietnã. O mentor do grupo é Carrick Masterson, um químico visionário, misto de Timothy Leary e Lex Luthor, que promove a revolução da Era de Aquário riponga à maneira bicho grilo: através das drogas. Porém, com uma diferença: O FX7, a substância que Masterson desenvolve, com base na Triptamina, possui algumas alterações, que ele guarda em segredo do resto do mundo. Sua droga, além de alucinações violentamente realistas e pesadelos vívidos, entre outros efeitos colaterais bem adversos, também concede capacidades super-humanas ao seu usuário, como superforça, poder de vôo, mudança de densidade corporal, projeção de raios de calor, etc. Enfim, o pacote completo. 



Pense numa droga que só dá bad trip... além disso, uma droga que faz ver Ctulhu em pessoa na sua frente é uma droga da qual eu jamais vou chegar perto!!! kkk
Entendeu agora porque o Ellis faz aquela pergunta logo na capa da HQ?

Alguns anos depois, Carrick rebatiza seus Niveladores de A Linha de Frente, mas aparentemente ainda mantendo o mesmo propósito. As décadas passam, gerações de membros do grupo vão e vêm, e nos dias atuais, seus membros estão sendo assassinados misteriosamente. Agora Carrick precisa correr contra o tempo para remontar sua equipe, fragmentada com os sucessivos atentados e descobrir quem está fazendo isso.



Esquina da Haight com a Ashbury, o berço da contracultura sessentista.

É aí que entra em cena Joshua Carver. Josh é jovem, idealista, vegano, tem um condicionamento físico impecável, lê bastante sobre política e sociologia. Ah, e sai à noite para fazer justiça com as próprias mãos, espancando marginais. Joshua está fazendo de tudo para chamar a atenção de Carrick Masterson. E finalmente consegue. Convidado a abrir mão de sua vida e integrar as fileiras da Linha de Frente, Joshua passa pelo "sacramento" e toma o FX7. Apesar de reações adversas horríveis e desfigurantes, a droga funciona e Josh se torna um super-humano. Agora, dentro desse turbilhão que a Linha de Frente se tornou, Joshua (e nós também!) descobre que nada é o que parece, e assim como em Verão Negro, presenciamos uma torrente de morte, caos e destruição como poucas vezes se vê em uma HQ de super heróis... 


"Olha só isso! É como acertar aquele truque da toalha de mesa na primeira tentativa!"

Herói Nenhum, na proposta dos assuntos abordados, é riquíssima: além de trazer mais uma vez para a mesa de debates o transhumanismo, Ellis traça um paralelo entre Os Niveladores/Linha de Frente com o movimento da contracultura, que azedou e teve seus ideais desvirtuados e corrompidos. Além disso, a HQ enfoca questões como justiça e vigilantismo: é considerado justiça apenas o que é realizado pelas autoridades estabelecidas? e se o cidadão resolve praticar justiça por iniciativa própria? 




Apesar de todos esses questionamentos, Herói Nenhum é uma grande promessa não cumprida em sua plenitude. Seu andamento por vezes é apressado, principalmente em sua conclusão, e faltou mais um pouco de desenvolvimento de personagens, mais flashbacks de outras formações da Linha de Frente e mais desenvolvimento no final da trama, apesar do excelente plot twist e seu final apocalíptico. Não estou dizendo que Herói Nenhum é ruim. Muito pelo contrário, é a minha favorita da trilogia super-heróica (talvez por causa da elevada dose de cinismo, onde não há um personagem realmente ético, e é repleta de tons de cinza), mas na minha opinião talvez o problema tenha sido apenas o formato de mini série. Herói Nenhum merecia bem mais que suas oito edições, para ser desenvolvida sem pressa e todos os temas abordados serem entregues de forma mais orgânica na trama. Mesmo assim, é tão divertida quanto Verão Negro, um blockbuster muito bem desenhado - por Juan Jose Ryp, artista de Verão Negro - e recheado de ação, violência e loucura, tudo à moda Warren Ellis de contar histórias.


As capas variantes de Herói Nenhum prestam tributo a algumas HQs já consagradas em vários momentos chave da história dos quadrinhos, como algumas dessas que eu pincei aí embaixo:


















Enfim, a segunda das três mini-séries que engloba o Watchmen de Ellis esmiuçada aqui na Zona. E AQUI a resenha da última mini dessa fantástica trilogia, Superdeus. Até +!!  



FX7 ou "Jujuba de Nietzsche", como é conhecido nas ruas rsrs