segunda-feira, 22 de maio de 2017

CORAÇÃO SATÂNICO, de William Hjortsberg, ou “Um Hellblazer Noir com a melhor história de John Constantine jamais produzida pela Vertigo/DC Comics"




Por EDUARDO CRUZ INVERTIDA






Não se pode enganar o Diabo.

Isso é um fato. Ou pelo menos, um fato dentro dos universos ficcionais rs. As melhores histórias sobre o assunto são aquelas que comprovam a máxima acima. Não dá pra ter uma história que envolva o próprio Chifrudo como personagem central E ter um final feliz ao mesmo tempo.

O Tinhoso está aí desde sempre. Segundo os teólogos, o Cramulhão é muito mais antigo que o próprio homem, então seria muita presunção crer que uma pessoa, por mais inteligente e experiente que seja, fosse capaz de passar a perna no Pai da Mentira. E é também por causa desse adágio que eu acho perfeitamente compreensível quando alguém não concorda, por exemplo, com o rumo que Garth Ennis deu ao personagem John Constantine, sempre às voltas com ocorrências demoníacas em suas histórias, quando livrou o personagem de um câncer terminal bolando uma trama intrincada onde Constantine ludibria três grandes entidades infernais e ainda lava a alma dando o dedo médio para o Primeiro dos Caídos, no já clássico arco “Hábitos Perigosos”, láááááá nos anos 90, na falecida revista "Vertigo", da editora Abril.


Foi divertido? Foi! 
Foi Massavéio? À beça! 
Ainda me lembro de quando era garoto juvenil e vibrei com essa saída para uma situação que parecia levar ao fim do personagem e ao encerramento do título, mas analisando friamente, quais são as chances de uma pessoa que viveu trinta e poucos anos, ou sessenta, ou mesmo cem, de ter qualquer vantagem estratégica sobre uma inteligência não humana, e que em escala de poder fica abaixo apenas de seu próprio criador que, dizem, é o criador de todo o resto também? rs

Agora, se você admite essa possibilidade, ou melhor, a IMpossibilidade de uma história em que o protagonista engane o Cabrunco e saia inteiro pra se gabar, e fica se perguntando que rumo uma história assim pode tomar, tenho uma ótima recomendação: Coração Satânico, de William Hjortsberg!

"É como se Raymond Chandler tivesse escrito 'O Exorcista'. Fabuloso. Nunca li nada igual."
Stephen King

Na verdade, Coração Satânico foi uma recomendação do Ricardo C., o outro zelador da Zona Negativa. Ele adora tanto o livro quanto o filme, e insistiu que eu lesse a história. Eu conhecia apenas o filme, como 90% das pessoas que ouvem falar em Coração Satânico. “Mas então porque é você escrevendo essa resenha, e não ele, que conhece o livro há muito mais tempo que você?”, vocês vão perguntar. Bem, se a vida fosse justa, seria um texto dele, mas fui tentado pelo Pé-de-Bode, e bati com uma pedra em sua cabeça enquanto ele estava distraído trabalhando em algum outro texto. E assim Caim matou Abel.



A trama de Coração Satânico é ambientada na década de 1950, e a história é narrada em primeira pessoa por seu protagonista, Harry Angel, um detetive particular que é contratado pelo enigmático Louis Cyphre (sacaram?? sacaram????) para localizar o paradeiro de um músico, Johnny Favorite. A princípio, o que parecia ser mais um caso rotineiro degenera lentamente, à medida que a história avança, para mistérios, mortes, rituais sangrentos e tenebrosos de vodu no Central Park à noite, muitos pentagramas invertidos, magia negra e o que parece ser a mão do próprio Príncipe das Trevas encadeando cada vez mais acontecimentos macabros, que culminam em... bem, não vou me estender nos detalhes nem dar spoilers, ou corro o risco de acabar sufocado com meus próprios genitais decepados ;>)

E não se deixem enganar pelo clima de romance policial noir à primeira vista: o que começa como um romance de Mike Hammer, com ruelas escuras, becos esfumaçados, intrigas, mulheres fatais e crimes violentos rapidamente toma contornos  dignos de um arco de John Constantine: Hellblazer à medida que a investigação de Angel avança e ele desvela pouco a pouco o mistério de Johnny Favorite, e paralelamente, mistérios sobre si próprio. O detetive particular da história segue à risca a cartilha do típico detetive do gênero American Crime Novel: durão, fumante inveterado, beberrão, bom de briga e que muitas vezes recorre a métodos e recursos à margem da lei para levar seu trabalho a cabo. 

A revelação do mistério e o clímax da história são superiores e muito mais diabólicos do que muitas das fases de Hellblazer, que em suas 300 edições publicadas, teve seus altos (Jamie Delano, Andy Diggle, Warren Ellis) e baixos (Mike Carey, Denise Mina). É uma história cuja leitura é um deleite, num ritmo nem muito lento, nem corrido demais. A impressão que se tem desde as primeiras páginas é que Hjortsberg tem perfeito controle do ritmo da história que está contando. Eu mesmo li bem mais devagar que o de costume, apenas para que o livro não acabasse tão rápido rs.

Em 1987 foi produzida uma adaptação cinematográfica, roteirizada e dirigida pelo competentíssimo Alan Parker (Mississipi em chamas, Pink Floyd – The Wall, O expresso da meia noite). O roteiro de Parker, apesar das pequenas modificações (como por exemplo, transpor parte da história para o estado da Louisiana, provavelmente para legitimar ainda mais o contexto das religiões africanas na trama, ou mais provavelmente porque certas cenas chave do livro são infilmáveis, como a cena da missa negra que Angel presencia em uma estação de metrô abandonada, onde acontece TUDO que se pode esperar de uma verdadeira missa negra!), conserva com perfeição o ritmo do livro no que tange à investigação de Angel e todos os eventos tétricos que acontecem pelo caminho, bem como mantém o final macabro, que escancara o inferno bem na nossa cara. Se não tiver paciência para ler o livro, - o que eu acho um pecado, até mesmo no inferno – o filme também não decepciona. Muito pelo contrário. O Louis Cyphre interpretado por Robert De Niro é magnífico, com doses cavalares de mordacidade, sarcasmo e deboche pela criação divina, e seu joguinho com Angel lembra muito um gato brincando com uma barata: sádico, atrevido e agindo como se tivesse todo o tempo do mundo. A cena em que Harry Angel, (interpretado pelo galã hoje deformado Mickey Rourke) encontra Cyphre em uma igreja dá o tom de um dos melhores Cramulhões já interpretados no cinema. Nota 10! AdEvogado do Diabo??? Al Pacino se cagaria de medo do Cabrunco do Robert De Niro! 

"Há religiões suficientes para os homens se odiarem, mas não o bastante para se amarem."
Louis Cyphre



 

Robert De Niro como Louis Cyphre e Mickey Rourke no papel de Harry Angel

No Brasil, Coração Satânico foi publicado em 1987 pela editora Best Seller e estava esgotado há vários anos, sendo considerado uma raridade entre os colecionadores. Mas uma nova edição foi lançada pela Darkside Books, atualmente uma das editoras mais expressivas nesse nicho de horror, que resgatou o livro do Fosso Sem Fundo para publicá-lo em mais uma magnífica edição, com acabamento e projeto gráfico irrepreensíveis, o que já é uma marca registrada da editora. Eis uma edição pra Sete-Peles nenhum botar defeito!

Capa da primeira edição brasileira de Coração Satânico, de 1987

Uma história fantástica, poderosa e carregada de simbolismos. Um híbrido perfeito entre os gêneros policial e horror. Não se esqueçam de matar uma galinha e acender umas velas pretas para dar graças por essa bênção, pessoal.





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