Por EDUARDO CRUZ
“A estrada atrás de si é tão similar quanto a que está à sua frente. De certa forma, tudo parece o mesmo, não importa a direção para a qual se mira.”
Eu gostaria de poder afirmar aqui que discorrer sobre a obra de Ana Paula Maia é fácil, ainda mais porque o Ricardo já desbravou essa trilha aqui na Zona Negativa quando soltou aquele post da Saga dos Brutos, onde comentou, de uma só vez, a trilogia Carvão Animal, De Gados e Homens e Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos. Mas isso não seria verdade. Nunca é fácil ingressar no universo "ficcional" de Ana Paula Maia. Uma voz única no panorama literário nacional, sua obra obriga o leitor a olhar de frente e bem de perto o sofrimento dos negligenciados, os embrutecidos, os ignorados pelo sistema, aqueles que sentem a porrada diária de se viver nesse status quo de desigualdade social no qual estamos imersos há... sei lá, quando eu nasci esse cabaré já estava aí, funcionando a pleno vapor, queimando gente feito carvão e convertendo isso em dinheiro no bolso de alguns poucos.
A prosa de Ana Paula não consiste de histórias para elevar o espírito, exaltando a apenas a beleza, como alguns apalermados por aí acham que deve ser a função da arte. Se você se arma de coragem e estômago para embarcar nessas histórias, tem que estar de coração aberto para sentir um bom bocado de dor, abandono e sofrimento, e dar uma bela mordida nesse pão azedo que os mais desprovidos comem todos os dias. Quando comem. A autora dá voz, rosto, nome e passado para personagens sem perspectiva de futuro, os miseráveis desse Brasil onde já é institucionalizado o mantra "Uns com muito e muitos com quase nada".
Em Enterre Seus Mortos, acompanhamos novamente Edgar Wilson, personagem recorrente em outros livros da autora. Wilson, sendo o estereótipo do excluído, sem passado nem futuro, sempre está às voltas com trabalhos que mais ninguém faz. E esse é o foco de Ana Paula, comprometida em contar histórias que ninguém mais conta. Histórias dos invisíveis. Dos lixeiros, dos matadores de porcos e bois, e dos trabalhadores que recolhem carcaças de animais. Neste romance Edgar Wilson está ganhando a vida, como sempre em um local indeterminado e desolado desse Brasilzão, ao lado de Tomás, um ex-padre excomungado. Eles trabalham para uma firma responsável por recolher carcaças de animais atropelados pela estrada. Raspar do asfalto, recolher os pedaços, jogar na caçamba, levar para o depósito e triturar os restos. Esta é a rotina de Wilson, até o dia em que ele encontra um corpo de uma mulher enforcada na mata. Não faz parte de sua função, mas Wilson recolhe o cadáver, devido às condições precárias dos órgãos responsáveis: o rabecão está quebrado. Brutalizado, mas não desumanizado, Wilson se incomoda com o fato de um ser humano ser assim abandonado no final de sua existência, com "as carnes expostas ao vexame". Para evitar que os abutres acabem com o corpo, o leva ao depósito de seu trabalho, guardando-o em um velho freezer, à espera de uma resolução por parte das autoridades competentes. Para piorar, alguns dias depois encontram outro corpo em condições parecidas, dessa vez de um homem. E, bom, a partir daí não vou detalhar muito mais a história para não estragar surpresas. Só adianto que Edgar Wilson e Tomás, contrariados com tamanho descaso, tentam, por conta própria, dar um fim digno aos cadáveres.
"Desde que os recolheu, tornou-se responsável por eles. De certa forma isso o faz se sentir menos miserável, porém não mais feliz. Nenhuma pessoa é capaz de se lembrar da hora de seu nascimento, mas o momento da morte, a todos é conhecido."
A autora tem utilizado o personagem Edgar Wilson desde os romances anteriores para conduzir o leitor por seus cenários. Entretanto, não é obrigatório ler os livros anteriores, nem há uma ordem de leitura para a obra de Ana Paula Maia. Cada história é fechada em si, e Wilson é a nau em que a autora nos coloca para trafegar por esses panoramas desesperadoramente desolados de suas histórias, como se nós não tivéssemos a fibra para suportar os acontecimentos que ela narra por nós mesmos. E ela está certa. Nós não aguentamos. Edgar Wilson é casca grossa, e é o muro que nos protege da porrada crua que é a sua prosa. É o filtro sem julgamentos morais, que atenua o impacto. Ou melhor, os impactos. Muitos deles, do início ao fim.
Um ponto interessante é a autora ter focado em algo que não é muito abordado nos livros anteriores: a religião. Porém, como o tom geral da história, a religião aqui não é um elemento positivo, nem evoca espiritualidade autêntica, e sim apenas uma ferramenta de manipulação e alienação. Aqui foi onde li alguns dos comentários mais ácidos sobre o panorama religioso em regiões periféricas, onde a bíblia é grotescamente deturpada a favor das conveniências do "líder espiritual". Inclusive a cena final do livro é a mais poderosa metáfora do nosso neopentecostalismo atual que eu já vi até hoje! Fiquei embasbacado com a mensagem. E concordo. Bravo, moça.
"(...) Enquanto isso, uma parte dos fiéis se tornou evangélica e, portanto, uma horda de homens autointitulados pastores da fé disputa territorialmente a conversão de uma alma à sua própria igreja. O livre comércio religioso apoiado em idéias de prosperidade não apenas no céu, mas também na vida terrena, aliado aos três pilares que o sustentam - culpa, medo e ganância - , construiu um novo sistema em que não somente as penitências resultam em gratidão dos céus, mas também o antigo modelo "eu pago, eu recebo".
“Encurvados aos pés de um Cristo irado cheio de juízo e de fúria, eles apontam suas Bíblias como quem aponta uma pistola. Falam de almas perdidas, mas desejam o sangue e as vísceras. Revestem-se de uma autoridade divina que insistem ter recebido de Deus e falam em línguas estranhas, uma espécie de idioma sobrenatural que somente os escolhidos podem compreender. Tudo o que não está debaixo desse manto divino é maldito e condenado nos séculos vindouros a um inferno setorizado.”
O Brasil simbólico que Ana Paula Maia retrata é um espelho que, apesar de brutal e distorcido, ainda assim mostra os contornos corretos do verdadeiro Brasil, o país do descaso, do horror e absurdo naturalizados, entranhados em todas as classes. Acrescente a este panorama de esterilidade e desolação o binômio desespero + ignorância, e uma dose de religião. Alguma dúvida de que o resultado é desastroso e lamentável? É nesse Brasil, de povoados esparsos e interligados por trilhas e estradas, que aquele bicho que vemos, de passagem, agonizando na rodovia é a nossa sanidade enquanto nação.
“Não há nada no céu: nem fúria, nem anjos, nem santos. É um céu vazio, completamente sem cor e som. Inerte.”
Enterre Seus Mortos é um livro que segue poderoso e impactante literalmente até a última página. Um livro angustiante e ácido, mas ter estômago para lê-lo e processar tudo contido nessas páginas é recompensador.
P.S.: Senhorita Ana Paula Maia, eu me lembro de nos outros livros ter lido algumas vezes sobre Edgar Wilson nunca ter visto neve de verdade na vida e essa ser a maior vontade do personagem. O que você fez na última cena do livro foi simplesmente cruel, moça....
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