quinta-feira, 14 de setembro de 2017

SKREEMER, de Peter Milligan + Brett Ewins + Steve Dillon, ou "Arqueologia Vertigo"





Por EDUARDO CRUZ





É sombria. Muito sombria.
A noite ou a HQ?
Ambas, e trabalhar na HQ tomou muitas
noites sombrias.
A semente de uma idéia - Milligan e eu sentados
no cinema assistindo a Era uma vez na América.
A semente de uma idéia.
Gângsteres.
Uma HQ de gângsteres.
Uma HQ futurista de gângsteres.
Torne retrô sci-fi e é isso.
A era está ficando velha.
O mundo é uma lugar perigoso.
No quadrinho ou no planeta?
Em ambos.

Brett Ewins, em texto de introdução de Skreemer 


Já ouviram falar em Finnegans Wake?

Um livro não linear, sem começo e sem fim, onde nada tem necessariamente uma sequência lógica, e eventos não estão obrigatoriamente encadeados entre si. Onde o aleatório predomina. Mais ou menos como a própria vida. Finnegans Wake é uma narrativa aparentemente caótica, um livro que levou 17 anos para ser terminado, onde o autor James Joyce mistura neologismos e funde palavras de idiomas diferentes, uma verdadeira torrente de idéias e palavras criadas por Joyce exclusivamente para que ele expressasse suas idiossincrasias em um fluxo narrativo, e que é o pesadelo de qualquer tradutor! Curiosamente, o Brasil ousou e nós somos um dos poucos países a ter uma tradução de Finnegans Wake. Tarefa que poucos conseguiram sem perder a essência da obra na tradução.

James Joyce

Mas tão complexo quanto traduzir Finnegans Wake é lê-lo: uma obra que atrai e repele leitores com igual intensidade, muitos estudiosos atribuem diversos significados à obra sem chegar a uma conclusão definitiva. Entre tantos significados e leituras há quem diga que não há o que entender e que o livro é pura imersão na linguagem, e há quem enxergue a apreensão e o vislumbre do eterno, fruto da contemplação dos ciclos que se sucedem entre si, eras de homens, deuses e heróis. A mesma eternidade que o personagem-título da HQ, O Skreemer, visa alcançar através da perpetuação de si mesmo projetado em uma linhagem, mantendo o ciclo de vida e morte nos trilhos.

"Fluxo de linguagem", "oceano de palavras vivas"... Será essa a sensação de ler Finnegans Wake?


Aposto que os parágrafos aí em cima assustaram vocês, não? "Que diabos tá acontecendo aqui? o título é de um gibi da Vertigo, mas o texto é uma desgracenta duma aula de literatura??? esse animal tá esclerosado? Isso é alguma pegadinha???". 
Nada disso, macacada. É porque pra compreender melhor Skreemer, a HQ de Peter Milligan (roteiro) e Brett Ewins + Steve Dillon (arte), é preciso pelo menos saber do que se trata(m) o(s) tal(is) Finnegans Wake  (sim, a referência é dupla! e uma dentro da outra, a inception das referências! rsrsrsrs) que são repetidamente citados ao longo de toda a história. Milligan mirou alto e tentou entregar uma história que apesar de curtinha, seria o seu épico de gerações. Inspirado em filmes como Era uma vez na América e Caçada na Noite (também vai ser inevitável pro leitor fazer conexão com O Poderoso Chefão, Os Bons Companheiros e Scarface) e no próprio livro Finnegans Wake, Skreemer conta a história do líder criminoso Veto Skreemer, porém narrada por Timothy Finnegan, um capanga menor na organização de Veto. Tim é encarregado de fazer a segurança da mulher de Veto, ou melhor, a prostituta que Veto escolheu para dar à luz a seu herdeiro. A história é ambientada em Nova York, 38 anos após uma guerra que deixou a civilização em pedaços. Veto é um gigante que sente que a era dos gigantes está chegando ao fim. Ele é o dono de um império criminoso conquistado às custas de muita violência e brutalidade, e para combater essa obsolescência irrefreável que se aproxima no horizonte, Veto Skreemer tem um plano monstruoso até mesmo para os seus padrões execráveis, algo tão terrível quanto o holocausto que assolou o mundo. À medida que esses acontecimentos se desenrolam, caminhando rumo à inevitável conclusão trágica, outros personagens nos dão acesso ao passado de Veto por meio de flashbacks, onde vemos como ele formou sua própria gangue com o auxílio de seus amigos, ainda adolescente, galgando degrau por degrau até se tornar um dos maiores "Presidentes", como são nomeados os líderes criminosos nessa distopia grotesca. Esse recurso dos flashbacks escancara tanto a intimidade dos personagens para o leitor que vemos camadas que chegam a dar a impressão de os conhecermos como pessoas reais, tal a profundidade que o desenvolvimento de Milligan alcança na narrativa.







A HQ foi publicada pela DC comics em 1989, e posteriormente incorporada ao selo Vertigo, o que, levando em conta o teor da história, foi muito adequado. Milligan consegue, através da narrativa que vai e volta em flashbacks, capturar esse espírito de ciclos contido em Finnegans Wake com maestria. O dilema de Veto também é um prato cheio pros filósofos amadores, pois o mafioso padece da velha dicotomia determinismo x acaso, chegando ao ponto de "forçar a mão do destino" em alguns momentos, para que tudo saia conforme ele crê que as coisas devem acontecer. Uma das primeiras histórias da Vertigo, que já nasceu produzindo clássicos! Alôu Marvel!
A arte fica a cargo do imorrível Steve Dillon, que dispensa apresentações, e com seu traço inconfundível também dispensa maiores comentários. Muito se fala sobre Moore, Gaiman, Morrison, Milligan e companhia serem os alicerces do selo Vertigo, no tocante à produção de histórias. Já do lado dos artistas, Steve Dillon é fundamental, e Skreemer mostra que o saudoso artista britânico foi um dos parteiros da Vertigo.







Ué... tradução do Márcio Seixas???

A segunda conexão entre Skreemer e Finnegans Wake é com a música de mesmo nome, uma canção tradicional irlandesa com origem estimada por volta da década de 1850, que relata uma anedota acerca de um pedreiro, Tim Finnegan, que nasceu "amando a malvada (...) e, para aliviar a labuta diária quando podia, tomava a maldita", e que, ao cair de uma escada, fratura o crânio e é dado como morto. Os frequentadores de seu funeral ficam exaltados, uma briga explode no recinto e um pouco de uísque é derramado no rosto do "cadáver" de Finnegan, fazendo com que ele desperte, "voltando à vida" e se unindo às celebrações. O uísque é tanto a causa da ruína quanto da ressureição de Finnegan. Aqui a expressão Finnegans Wake assume duplo sentido: a palavra "wake" tanto pode significar "despertar" quanto "funeral", e Tim Finnegan passa pelas duas situações na letra da canção. Vale lembrar também que a palavra whiskey é derivada da expressão irlandesa uisce beatha, ou "água da vida". E devo acrescentar que essa é a maior verdade que já li na minha vida ;>). A canção tem sido regravada de tempos em tempos por vários grupos, como o Dropkick Murphys, entre outros, e é a canção que o avô do personagem Timothy Finnegan vive cantarolando ao longo de toda a HQ. A canção serviu como base para o livro de James Joyce, com a ressurreição cômica de Finnegan servindo como a metáfora ideal para o ciclo da vida.







Skreemer não é inédito no Brasil: a editora Abril publicou a HQ aqui no começo dos anos 90 em formato americano, em uma mini série em seis edições. Já em 2000 e uns a editora Brainstore perdeu a chance de fazer um belo resgate histórico e cagou tudo: publicou no tal formato paraguaio, em preto e branco, tradução sofrível e uma qualidade tão ruim que se via a arte pixelada nas linhas dos desenhos, se olhasse com um pouco de atenção. A bola caiu no campo da Panini para se fazer justiça e dar o tratamento que Skreemer merece, publicando a obra em edição de luxo, com capa dura, papel couché e até mesmo um pequeno apêndice com a letra de Finnegans Wake, na versão original e também traduzida. Um verdadeiro trabalho de arqueologia da Vertigo, um belo resgate de um pedacinho da história das HQs! A invasão britânica começou AQUI! (também rs).

Se encontrar essa edição de Skreemer em um sebo, FUJA!

Eu ainda poderia falar mais um pouco, como por exemplo, o porquê de Joyce ter optado não colocar apóstrofo em "Finnegans", mas vou parar por aqui! Enfim, digam o que disserem do Finnegans Wake de Joyce: que é um fluxo de genialidade, ou apenas uma tentativa de escrever com muito uísque na cabeça. Whatever. Que sigam os debates inconclusivos até o fim dos tempos. 

Skreemer não deixa nem sombra de dúvida: É brilhante e pronto.




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