quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

NÓS, de Evgeny Zamiatin, ou "Manual de Instruções para se Criar Uma Distopia"

Por RICARDO CAVALCANTI



A arte está em constante movimento e se transformando em algo novo, através de influências, inspirações e releituras; assim como “Os Livros da Magia” de Neil Gaiman, inspirando J.K Rowling a criar “Harry Potter”; “Battle Royale” ajudando Suzanne Collins a compor o mundo de “Jogos Vorazes”; “Eusou a Lenda” de Richard Matheson inspirando George A. Romero em seu “A Noite dos Mortos Vivos”. Mas você já se perguntou o que inspirou obras como “Admirável Mundo Novo”, ou “1984”? Trata-se do livro “Nós”, do russo Evgeny Zamiatin (Евгений Замятин). Apesar de pouco conhecida até então (e de difícil acesso), a obra é de extrema importância e influenciou diretamente autores como Aldous Huxley, Anthony Burgess e George Orwell em suas obras mais icônicas.



Considerado um dos maiores autores russos do século XX, Zamiatin ganhou sua primeira biografia somente em 2013, pelas mãos da autora J.A.E. Curtis, intitulada “The Englishman From Lebedian: A Life of Evgeny Zamiatin”. O livro faz um apanhado desde a sua infância até seus últimos dias, passando por toda sua formação cultural, revelando o homem, suas preocupações e seus fortes princípios.



Evgueny ZamIatin se definia como um herege e costumava desagradar as sociedades retratadas em seus contos, livros e peças de teatro, mostrando o que ninguém queria ou gostaria de ver - sempre enfiando o dedo na ferida e sofrendo as consequências por conta disso. Durante o período que viveu na Inglaterra (supervisionando a construção de um navio para seu país), escreveu “Os Ilhéus”, que era uma crítica à sociedade inglesa. A obra ofendeu tanto aos ingleses, que não foi possível sua publicação na terra da Rainha. Antes disso, na Rússia, teve seu romance “Au bout Du Monde” censurado pelo órgão de repressão do Czar, por ser considerada ofensiva.



“Nós” foi escrito entre 1920 e 1921, pouco depois da revolução russa (ocorrida em 1918) e lançado em inglês no ano de 1925; como um alerta para os perigos do totalitarismo que o autor estava presenciando logo nos primeiros anos de criação da antiga União Soviética. Depois que o livro foi “descoberto” pelos membros do partido comunista, Evgueny Zamiatin acabou se vendo obrigado a pedir exílio à Stalin para fugir de represálias, indo viver na França até a sua morte. A primeira edição russa do livro só saiu em 1988, durante a abertura política e econômica promovida pela Perestroika de Gorbachev. O livro já havia sido lançado por aqui em 1963 com o nome “A Muralha Verde” e posteriormente pela editora Alpha Omega, já batizada como “Nós”.



No mundo criado pelo autor, nos deparamos com uma sociedade distópica em que todo o individualismo some por completo. Os nomes também são abolidos e os membros da sociedade são identificados apenas por números. A palavra “eu” foi extinta, pois tudo é realizado para a coletividade; tudo se resume a “nós” (daí o nome do livro). Após uma grande guerra que durou 200 anos e dizimou 80% da população mundial, surge a figura do Benfeitor: O Grandioso Estado Unifcado. Travestido num discurso de “bem estar para todos” e sob o argumento de expandir a felicidade, o governo impõe goela abaixo sua fórmula matemática para a perfeita felicidade - que também se tornou apenas mais um processo burocrático estatal. O Estado decide quando e como você come, quando dorme, do que você gosta e com quem se relaciona. O amor, os sonhos, a fé em um ser divino e as dúvidas também passam a não mais existir. As paredes e portas são transparentes para facilitar a vigilância e “proteger” a todos, como no Grande Irmão de George Orwell. Tudo é definido a partir de cálculos matemáticos - inclusive o sexo. Existem dias específicos para a prática de tal ato. Além disso, todos têm direito ao corpo do outro para fins sexuais, bastando apenas cumprir as formalidades de preencher alguns formulários e requisições.


O livro é contado através das anotações do D-503, um construtor da nave Integral, que levará esses escritos como relatos dessa sociedade perfeita, para que as civilizações em outros planetas tenham acesso ao
"maravilhoso mundo matematicamente feliz, proporcionado pelo magnífico Estado Unificado". Caso não sejam convencidos por palavras, o Estado Unificado se verá obrigado a usar a força para torná-los felizes, usando todo o arsenal bélico (caso seja necessário). Impor a força para te fazer o bem, mesmo contra a sua vontade, é um contra-senso absurdo, mas que ainda é usado à exaustão. É com esse tipo de argumento que se invadem alguns países hoje em dia e se impõe um determinado regime político à força.


Enquanto toda a humanidade se rende a Henry Ford em "Admirável Mundo Novo" (mudando, inclusive a forma de dividir a história do mundo entre "antes e depois de Ford"), em "Nós", Taylor é considerado um profeta. A conclusão que podemos tirar com isso é que: os conceitos da administração científica podem acabar com o mundo como conhecemos, transformando todo comportamento humano em movimentos robóticos, calculados e programados, nos mergulhando em uma imensa distopia.




Já nas primeiras páginas, podemos notar muitos elementos que depois seriam explorados também em livros como "Laranja Mecânica" de Antony Burgess, ou no "Farenheit 451" de Ray Bradbury - além das obras já citados acima. Durante a leitura, você pode, como num jogo, tentar descobrir em quais partes as histórias foram influenciadas por este livro. Para os fãs dos autores mencionados até aqui, digo que certamente é uma obra que não pode faltar na sua lista de leitura. Para quem nunca leu nenhum desses livros, sinta-se privilegiado por ter a oportunidade de conhecer a “pedra fundamental” que deu origem a todas essas obras. Enquanto muitos usaram “Nós” como influência e inspiração, outros preferiram nem se dar ao trabalho de disfarçar que estavam copiando descaradamente, como é o caso de Any Rand no livro Cântico. Mas isso não vem ao caso agora.



Poucas adaptações foram feitas da obra de Zamiatin. O livro ganhou uma adaptação para a TV alemã em 1982, batizada de “Wir” (nós, em alemão) e dirigida pelo checo Vojtech Jasny. Estamos esperamos uma boa alma que faça as legendas deste filme.


Uma outra adaptação, um curta metragem francês de 2016, está completo no youtube. Dirigido por Alain Bourret, recebeu o nome de “The Glass Fortress”.

Apesar de a ideia de se viver num mundo distópico possa parecer algo muito distante de nós (pensando bem, nem tanto), no caso de Evgueny Zamiatin, ele estava vendo acontecer diante de seus olhos. O que parecia óbvio e assustador para o autor, não era perceptível para a maioria das pessoas. Fica a pergunta: Será que todos que vivem em uma distopia, sabem que estão inseridos em uma?


A arte não é feita somente para agradar aos sentidos e nos deixar extasiados com sua beleza. Serve também para contestar o status quo. Segundo o próprio autor, “a arte deve ser feira por loucos, hereges e visionários”. Quando a arte se torna subversiva por apontar para uma outra direção - ajudando a fazer cair as vendas dos olhos, derrubando conceitos, tabus e "verdades absolutas" - talvez ela esteja cumprindo bem o seu papel. Para perceber se o objetivo foi alcançado, basta notar se o alvo se incomoda, e observar como reage quando isso acontece.



A edição da Aleph lançada em março deste ano, além de dar um tratamento caprichado em capa dura, digno de sua importância, traz entre seus extras uma resenha de George Orwell, em que ele faz o paralelo entre “Nós” e “Admirável Mundo Novo”. Certamente “Nós” estava naquele momento, ao lado de sua cabeceira, cheia de rabiscos e anotações enquanto escrevia 1984.

Só Admirável Mundo Novo, senhor Orwell?

Além disso, a edição traz a comovente carta de Zamiatin enviada a Stálin, solicitando exílio devido à constante perseguição que vinha sofrendo por conta de suas obras. Mais que uma mera curiosidade, trata-se de um importante documento histórico.



Como já foi dito, a obra é um excelente manifesto e um alerta para os perigos do totalitarismo, além de suas discussões no seu aspecto filosófico, antropológico, religioso e histórico. Atualmente, além deste livro, só temos de Zamiatin o conto “A Caverna” traduzido para o português. Esperamos que esta seja uma nova porta se abrindo para as outras obras do autor que, mesmo após um século, ainda continua sendo tão influente e se mostrando mais atual que nunca.


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