Por
RICARDO CAVALCANTI
A arte está em constante movimento e
se transformando em algo novo, através de influências, inspirações
e releituras; assim como “Os Livros da Magia” de Neil Gaiman,
inspirando J.K Rowling a criar “Harry Potter”; “Battle Royale”
ajudando Suzanne Collins a compor o mundo de “Jogos Vorazes”; “Eusou a Lenda” de Richard Matheson inspirando George A. Romero em seu
“A Noite dos Mortos Vivos”. Mas você já se perguntou o que
inspirou obras como “Admirável Mundo Novo”, ou “1984”?
Trata-se do livro “Nós”, do russo Evgeny Zamiatin (Евгений
Замятин).
Apesar de pouco conhecida até então (e de difícil acesso), a obra
é de extrema importância e influenciou diretamente autores como
Aldous Huxley, Anthony Burgess e George Orwell em suas obras mais
icônicas.
Considerado um dos maiores autores
russos do século XX, Zamiatin ganhou sua primeira biografia somente
em 2013, pelas mãos da autora J.A.E. Curtis, intitulada “The
Englishman From Lebedian: A Life of Evgeny Zamiatin”. O livro faz
um apanhado desde a sua infância até seus últimos dias, passando
por toda sua formação cultural, revelando o homem, suas
preocupações e seus fortes princípios.
Evgueny ZamIatin se definia como um
herege e costumava desagradar as sociedades retratadas em seus
contos, livros e peças de teatro, mostrando o que ninguém queria ou
gostaria de ver - sempre enfiando o dedo na ferida e sofrendo as
consequências por conta disso. Durante o período que viveu na
Inglaterra (supervisionando a construção de um navio para seu
país), escreveu “Os Ilhéus”, que era uma crítica à sociedade
inglesa. A obra ofendeu tanto aos ingleses, que não foi possível
sua publicação na terra da Rainha. Antes disso, na Rússia, teve
seu romance “Au bout Du Monde” censurado pelo órgão de
repressão do Czar, por ser considerada ofensiva.
“Nós” foi escrito entre 1920 e
1921, pouco depois da revolução russa (ocorrida em 1918) e lançado
em inglês no ano de 1925; como um alerta para os perigos do
totalitarismo que o autor estava presenciando logo nos primeiros anos
de criação da antiga União Soviética. Depois que o livro foi
“descoberto” pelos membros do partido comunista, Evgueny Zamiatin
acabou se vendo obrigado a pedir exílio à Stalin para fugir de
represálias, indo viver na França até a sua morte. A primeira
edição russa do livro só saiu em 1988, durante a abertura política
e econômica promovida pela Perestroika de Gorbachev. O livro já
havia sido lançado por aqui em 1963 com o nome “A Muralha Verde”
e posteriormente pela editora Alpha Omega, já batizada como “Nós”.
No mundo criado pelo autor, nos
deparamos com uma sociedade distópica em que todo o individualismo
some por completo. Os nomes também são abolidos e os membros da
sociedade são identificados apenas por números. A palavra “eu”
foi extinta, pois tudo é realizado para a coletividade; tudo se
resume a “nós” (daí o nome do livro). Após uma grande guerra
que durou 200 anos e dizimou 80% da população mundial, surge a
figura do Benfeitor: O Grandioso Estado Unifcado. Travestido num
discurso de “bem estar para todos” e sob o argumento de expandir
a felicidade, o governo impõe goela abaixo sua fórmula matemática
para a perfeita felicidade - que também se tornou apenas mais um
processo burocrático estatal. O Estado decide quando e como você
come, quando dorme, do que você gosta e com quem se relaciona. O
amor, os sonhos, a fé em um ser divino e as dúvidas também passam
a não mais existir. As paredes e portas são transparentes para
facilitar a vigilância e “proteger” a todos, como no Grande
Irmão de George Orwell. Tudo é definido a partir de cálculos
matemáticos - inclusive o sexo. Existem dias específicos para a
prática de tal ato. Além disso, todos têm direito ao corpo do
outro para fins sexuais, bastando apenas cumprir as formalidades de
preencher alguns formulários e requisições.
O livro é contado através das anotações do D-503, um construtor da nave Integral, que levará esses escritos como relatos dessa sociedade perfeita, para que as civilizações em outros planetas tenham acesso ao "maravilhoso mundo matematicamente feliz, proporcionado pelo magnífico Estado Unificado". Caso não sejam convencidos por palavras, o Estado Unificado se verá obrigado a usar a força para torná-los felizes, usando todo o arsenal bélico (caso seja necessário). Impor a força para te fazer o bem, mesmo contra a sua vontade, é um contra-senso absurdo, mas que ainda é usado à exaustão. É com esse tipo de argumento que se invadem alguns países hoje em dia e se impõe um determinado regime político à força.
Enquanto toda a humanidade se rende a
Henry
Ford em
"Admirável Mundo Novo" (mudando, inclusive a forma de
dividir a história do mundo entre "antes e depois de Ford"),
em "Nós", Taylor
é considerado um profeta. A conclusão que podemos tirar com isso é
que: os conceitos da administração científica podem acabar com o
mundo como conhecemos, transformando todo comportamento humano em
movimentos robóticos, calculados e programados, nos mergulhando em
uma imensa distopia.
Já nas primeiras páginas, podemos
notar muitos elementos que depois seriam explorados também em livros
como "Laranja Mecânica" de Antony Burgess, ou no
"Farenheit 451" de Ray Bradbury - além das obras já
citados acima. Durante a leitura, você pode, como num jogo, tentar
descobrir em quais partes as histórias foram influenciadas por este
livro. Para os fãs dos autores mencionados até aqui, digo que
certamente é uma obra que não pode faltar na sua lista de leitura.
Para quem nunca leu nenhum desses livros, sinta-se privilegiado por
ter a oportunidade de conhecer a “pedra fundamental” que deu
origem a todas essas obras. Enquanto muitos usaram “Nós” como
influência e inspiração, outros preferiram nem se dar ao trabalho
de disfarçar que estavam copiando descaradamente, como é o caso de
Any Rand no livro Cântico. Mas isso não vem ao caso agora.
Poucas adaptações foram feitas da
obra de Zamiatin. O livro ganhou uma adaptação para a TV alemã em
1982, batizada de “Wir” (nós, em alemão) e dirigida pelo checo
Vojtech Jasny. Estamos esperamos uma boa alma que faça as legendas
deste filme.
Uma outra adaptação, um curta
metragem francês de 2016, está completo no youtube. Dirigido por
Alain Bourret, recebeu o nome de “The Glass Fortress”.
Apesar de a ideia de se viver num
mundo distópico possa parecer algo muito distante de nós (pensando
bem, nem tanto), no caso de Evgueny Zamiatin, ele estava vendo
acontecer diante de seus olhos. O que parecia óbvio e assustador
para o autor, não era perceptível para a maioria das pessoas. Fica
a pergunta: Será que todos que vivem em uma distopia, sabem que
estão inseridos em uma?
A arte não é feita somente para
agradar aos sentidos e nos deixar extasiados com sua beleza. Serve
também para contestar o status
quo. Segundo o próprio
autor, “a arte deve ser feira por loucos, hereges e visionários”.
Quando a arte se torna subversiva por apontar para uma outra direção
- ajudando a fazer cair as vendas dos olhos, derrubando conceitos,
tabus e "verdades absolutas" - talvez ela esteja cumprindo
bem o seu papel. Para perceber se o objetivo foi alcançado, basta
notar se o alvo se incomoda, e observar como reage quando isso
acontece.
A edição da Aleph lançada em março
deste ano, além de dar um tratamento caprichado em capa dura, digno
de sua importância, traz entre seus extras uma resenha de George
Orwell, em que ele faz o paralelo entre “Nós” e “Admirável
Mundo Novo”. Certamente “Nós” estava naquele momento, ao lado
de sua cabeceira, cheia de rabiscos e anotações enquanto escrevia
1984.
Só Admirável Mundo Novo, senhor Orwell? |
Além disso, a edição traz a
comovente carta de Zamiatin enviada a Stálin, solicitando exílio
devido à constante perseguição que vinha sofrendo por conta de
suas obras. Mais que uma mera curiosidade, trata-se de um importante
documento histórico.
Como já foi dito, a obra é um
excelente manifesto e um alerta para os perigos do totalitarismo,
além de suas discussões no seu aspecto filosófico, antropológico,
religioso e histórico. Atualmente, além deste livro, só temos de
Zamiatin o conto “A Caverna” traduzido para o português.
Esperamos que esta seja uma nova porta se abrindo para as outras
obras do autor que, mesmo após um século, ainda continua sendo tão
influente e se mostrando mais atual que nunca.
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