domingo, 22 de janeiro de 2017

ULTRA CARNEM, de César Bravo, ou "Tudo que eu quiser, o cara lá de baixo vai me dar!"









Por EDUARDO "A BESTA" CRUZ



"Na disputa entre o Céu e o Inferno nós somos o prato principal"



Quem gosta do gênero de horror sofre. Encontrar, independente da nacionalidade, um bom autor de histórias de horror, e eu digo horror com tutano (grafismo e violência - dentro do contexto, claro), dentes (mais gore e violência por favor!) e espinhos (uma dose de crítica social, sempre!) é um tanto quanto trabalhoso. Quem, como eu, está sempre procurando novidades nesse gênero, às vezes esbarra em becos sem saída, falsas promessas e narrativas que estão aquém das expectativas e hypes. Frustrante? Bastante. Ninguém gosta de chegar ao final de um livro (ou uma HQ) e se dar conta que as horas investidas passeando por aquela obra poderiam ser bem melhor empregadas lendo alguma outra. Mesmo assim, seja na música, cinema, literatura, os tiros no escuro têm que ser dados, o empreendedorismo para conhecer as novidades não pode morrer. Aos teimosos que não têm medo de arriscar pegar algo para ler, escutar ou assistir, conhecendo pouco ou nada a respeito da obra/autor, a recompensa às vezes chega na forma de excelentes surpresas.

Peguemos como exemplo o autor César Bravo: Esse paulista  de Monte Alto publica seus contos há bastante tempo de forma independente (mais em facebook.com/cesarbravoautor, ou no blog coisasdobravo.blogspot.com.br), mas "Ultra Carnem" é seu primeiro livro físico. Não que ele precisasse disso para obter reconhecimento e estabelecer uma base de fãs, coisas que Bravo já conquistou há bastante tempo. Com seu estilo que reverencia mestres como Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft e Clive Barker, mas ao mesmo tempo situa o leitor num cotidiano bem brasileiro, e sem maneirar na violência e em imagens intensas e pavorosas, não é de se admirar que esse autor esteja cada vez mais em evidência. Com este primeiro lançamento do autor pela Darkside Books, César Bravo dá um sopro de vida em um subgênero pra lá de esgotado e batido do horror - o satanismo e a demonologia - e devolve todo o grafismo, crueldade e perversidade que esse nicho da literatura de horror exige - e merece.




1 - O ABANDONO:
"Havia alguém ali. A figura conseguia ser mais negra que a noite. Era alta, ocupava toda a abertura do vão da porta. A coisa também tinha olhos. Eram intensos, brilhavam como brasa. Notando o padre mais perto, o visitante recuou um passo para fugir da luz. Apesar do medo que sentia, do coração aos pulos dentro do peito, Giordano avançou em sua direção"

Ultra Carnem (do latim "além da carne") se passa na cidade de Três Rios, interior de São Paulo. o livro é estruturado em quatro partes, mais um epílogo que amarra toda a trama. Tudo começa quando Vladimir Lester, um menino cigano, é enviado ao orfanato da cidade, aos cuidados do Padre Giordano. O menino foi expulso de sua tribo por razões desconhecidas para o padre, porém nada aparenta para ter merecido tal sina. Lester é introspectivo e não se integra com os outros meninos, e prefere ficar confinado em um quarto, com suas pinturas e esculturas. O menino utiliza uma misteriosa tinta para produzir suas pinturas, e o sentimento de xenofobia por parte de outras crianças do orfanato acaba culminando em um trágico episódio de bullying onde tomamos conhecimento do Mal que Vladimir Lester traz consigo. As consequências deste conto de abertura, um flashback no início do século XIX, irão reverberar através de todo o restante da história. 


2 - GÊNESIS:
"Nôa ainda estava à janela. Olhava para o lado de fora, para as formigas proletárias que trafegavam esperando um pé divino vir pisoteá-las. Crianças, velhos, adultos - eram todos feitos da mesma argamassa: aceitação e agonia."

No conto seguinte, já nos dias atuais, conhecemos Nôa, um jovem pintor sem talento, obcecado com a história do menino cigano pintor. Nôa roubou um livro em uma loja de curiosidades que contava fragmentos da  tenebrosa história de Vladimir Lester, e no ápice de sua obsessão, (digna de um personagem de H.P. Lovecraft, daqueles que só param quando já viram demais, e já estão à beira da insanidade), empreende uma caça aos artefatos do menino: as pinturas, a escultura da ciganinha - a relíquia favorita do garoto, e sua tinta especial. Seguindo pistas e investigando os fatos do passado, Nôa segue em uma caça ao tesouro diabólica neste conto, que flui ainda melhor que a abertura do livro, com um clímax que não deixa a desejar.


3 - O PAGAMENTO:
"Ele a usou como lata de lixo, santo Deus!
O tórax era mantido separado por uma trava de volante. Lá dentro, havia papel, latas de cerveja e guimbas de cigarros. O Açougueiro até defecou dentro dela. "

Neste terceiro conto acompanhamos Marcos, um técnico de informática à beira da falência, que mal consegue sustentar sua mulher, com a qual já não se entende mais, e seu filho Randy (em homenagem ao guitarrista Randy Rhoads), portador de necessidades especiais. Após realizar um serviço de reparos para uma lojinha de curiosidades - a mesma onde Nôa rouba o livro no conto anterior - sua dona, não tendo o dinheiro que Marcos lhe pede pelo serviço prestado, o paga de outra forma. Logo, Marcos consegue tudo que sempre desejou. Mas suspeita que o preço seja alto demais. Nessa história, Bravo exercita seu lado Clive Barker e nos dá cenas repugnantes, perpetradas pelo personagem conhecido como "O açougueiro". Cada vez que O Açougueiro aparece, o livro sobe para censura 90 anos, como se pode constatar no trecho ali em cima. Mais um conto onde não paramos de virar as páginas até chegar a seu ápice sangrento e arrepiante.


4 - O INFERNO:
"- Quem são eles? - perguntou, notando que os homens dentro da cela continuavam acuados.
- Negociantes.  Estão aqui embaixo porque passaram a perna em todo mundo lá em cima. Aqui você tem corruptos,  advogados inescrupulosos, investidores da bolsa, traficantes de mulheres... Não os borra-botas que sujam as mãos. Eles são os cabeças, se é que você me entende. Lá em cima, eles só tinham ouro e poder, aqui embaixo só tem uns aos outros. Eles discutem o tempo todo. Quase sempre a discordância evolui para a violência. É quando fica mais engraçado. Eles se mordem, furam os próprios olhos com suas canetas caras, depois acordam e fazem tudo outra vez. De novo, de novo e de novo."

Na quarta e última parte do livro vemos que os três contos anteriores se entrelaçam e desembocam neste aqui. Lucrécia, uma garçonete que escuta uma conversa que não deveria ser escutada por ninguém deste mundo, acaba sendo cooptada pelo próprio Diabo para auxiliar o Inferno a angariar almas e voltar a equilibrar a disputa com a concorrência. Lucrécia, que teve uma vida amarga e plena de sofrimentos, tragédias pessoais e escolhas erradas, aceita servir a Lúcifer por não simpatizar com o outro lado, por se sentir abandonada por Deus a sua vida inteira. Aprendemos que temos que nos levantar e recomeçar quando caímos, mas Lucrécia teve uma vida inteira de quedas brutais, até esta queda derradeira ao inferno. Nesse conto, Bravo solta a imaginação e vemos infernos dentro de infernos, amálgamas culturais do submundo, como funcionam as hierarquias, suas criaturas, a motivação de Lúcifer e suas legiões para desempenharem seu trabalho sem fim e até o destino de alguns personagens que apareceram nos contos anteriores.


5 - OS TRÊS REINOS:

O epílogo de "Ultra Carnem" fecha as pontas soltas dos protagonistas restantes, porém deixando um gancho sem forçar a barra para um possível retorno. Se foi intenção do autor, aguardemos por isso com prazer. Afinal, o Inferno está sempre querendo aumentar o número de seus ocupantes...



Apesar de certos momentos um tanto quanto previsíveis - como a identidade do personagem Lúcio, a narrativa é bastante fluida e o autor constrói com facilidade e desenvoltura tanto seus personagens quanto cenários extremamente críveis, o que facilita ainda mais a imersão nesse mistério macabro de quase 400 páginas. Do hotel barato de periferia sujo, insalubre e perigoso, e acredite, Bravo descreveu um com perfeição (não pergunte como sei disso - Ok, só digo uma coisa: Rua das Marrecas, RJ kkk) até o Inferno multicultural e amalgamado com muita competência no último conto, César Bravo nos leva com tremenda facilidade ao longo de sua história, suas linhas de tempo, dimensões infernais ou uma árida cidadezinha "no cu do mundo" sem se perder, nem perder o interesse do leitor. Os personagens são desenvolvidos ao ponto de este não ser um livro de horror gratuito. Ou melhor, o horror se passa em níveis diversos que não só o horror gráfico descrito em suas páginas. Vemos horror na história de Lester, que reflete a xenofobia, em especial o preconceito com o povo cigano, ou o horror do abandono infantil na realidade do orfanato, ou ainda a dificuldade que é viver de arte em nosso país, dilema que Nôa enfrenta antes de ser tocado pelo inferno. Ou ainda Lucrécia, que reflete a profunda descrença, desânimo e cinismo frente às porradas que a vida dá. Não raro as motivações dos protagonistas esbarram diversas vezes nos pecados capitais da Divina Comédia, de Dante, o que gera um sentimento ambíguo durante a leitura, já que apesar de haver a possibilidade de se apegar a esse ou aquele personagem, talvez todos estejam invariavelmente condenados.

A parte gráfica do livro é o "Padrão Darkside": muito capricho e tudo pensado em perfeito alinhamento com a temática da história, com símbolos pagãos e desenhos que parecem saídos de manuais medievais de demonologia entre os contos, e na parte interna das capas uma pintura que lembra Bosch, com seu "Jardim das delícias terrenas", mas só a parte do Inferno, claro rs. O simples manuseio de "Ultra Carnem" não é para os fracos de estômago ou de espírito. 




Bosch feelings...
Por um instante achei que tinha o livro de São Cipriano nas mãos. De novo.


Aceitem um conselho: não leiam nada dessas páginas intermediárias em voz alta


E se você acha que o Diabo não é tão feio quanto pintam, é porque não viu o Diabo pintado por Vladimir Lester, ou melhor, pelo César Bravo!

Ah, e quando for começar a leitura, não esqueça de ligar na playlist do Spotify, elaborada pelo próprio autor, para uma imersão completa em sua viagem ao inferno...




Por hoje é só, pe-pe-pessoal!!!




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