quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

CROSSED, de Garth Ennis e Jacen Burrows, ou "É melhor jair se acostumando com o colapso da humanidade"






Por EDUARDO CRUZ




A Panini pode atrasar (muito), pode errar (pra kct!), mas dessa vez parece que o timing foi perfeito! Como visto na CCXP 2018, a Panini surpreendeu geral e mostrou cojones, finalmente anunciando a publicação de Crossed aqui no Brasil! O impossível aconteceu e a HQ mais insana, violenta, profana, cruel e pessimista já produzida vai ter os quatro primeiros volumes publicados por aqui. O quê, nunca ouviu falar em Crossed? Compreensível. O título é publicado nos EUA até hoje pela Avatar Press, uma pequena editora que surgiu por volta de 1996, mas só estourou mesmo na segunda metade da década de 2000, quando começou a publicar HQs autorais de nomes de peso como Alan Moore (Neonomicon, Providence), Warren Ellis (Verão Negro, Herói Nenhum, Superdeus) e Garth Ennis, que publicou pela Avatar essa pérola da perversidade humana, uma HQ tão barra pesada que provavelmente faria Karen Berger, a mãe loira do selo Vertigo, expulsar Ennis de seu escritório aos pontapés por tanta profanação e perversidade em tão poucas páginas. Pouca coisa da Avatar foi publicada aqui, mas parece que a Panini começa a investir pesado em títulos da editora, como Cinema Purgatório, e agora Crossed.



Crossed é uma história de apocalipse zum... Não, isso está errado, não são zumbis. É o seguinte: Pensem em uma infecção que se alastra através de mordidas, transmissão de fluidos e qualquer outra forma de contágio que George Romero possa ou não ter imaginado em seus filmes didáticos. Em questão de minutos, os infectados desenvolvem uma grande ulceração repugnante, uma ferida aberta em formato de cruz no rosto, tornando-os inconfundíveis das pessoas saudáveis. Além disso, os infectados perdem todas as inibições e qualquer traço de moralidade ou compaixão, além do instinto de auto-preservação, porém sem perder a cognição, a coordenação motora e a agilidade, sendo assim capazes dos atos mais perversos, mas ainda sabendo, por exemplo, operar máquinas e veículos, só que para fazer as maiores atrocidades possíveis com elas. É como se o id, totalmente desbalanceado e finalmente livre das restrições do ego e do superego, estivesse livre para realizar todos os atos sombrios a si mesmo ou a outros. Tudo de cruel que você possa ter pensado, mas chutado de volta pro canto escuro da sua mente sem nunca ter feito, como "O que acontece se eu colocar um bebê no microondas?" ou "Quantas facadas posso dar nas minhas partes íntimas antes de sangrar até morrer?", "Quanto tempo leva pra se matar alguém a golpes de pênis de cavalo?" (sim, isso está na HQ rs) ou simplesmente falar as coisas mais horríveis e dolorosas para alguém que você ama. Pura maldade. 

Sim, aquilo na mão dele é um pênis de cavalo. É aqui que você desiste de ler essa resenha rs...





Mas é violência gratuita????


Esta primeira mini série se passa dez meses após o início da epidemia e acompanha um pequeno grupo de sobreviventes, reunidos ao acaso, que liderados por uma mulher, empreendem uma marcha para o Alasca, o local mais isolado possível naquele hemisfério do globo. Ao longo das dez edições, vemos muitos flashbacks mostrando como cada personagem foi parar ali e também vemos sua fuga de um pequeno grupo de infectados dotados de mais auto controle e determinação que outros doentes, determinados a caçar os sobreviventes.



O resultado disso é a HQ mais gráfica e cheia de gore já produzida, por muitas vezes contendo cenas altamente perturbadoras de atos de brutalidade e violência que alguns leitores jamais imaginariam ver em um gibi, inclusive de natureza sexual: Ser pego por um grupo de infectados invariavelmente significa um estupro coletivo, para, inevitavelmente se juntar às hordas de infectados, caso seja poupado(a). Fora a violência sexual, o catálogo de barbaridades desfiado nas páginas da HQ mostra o quão longe a imaginação humana pode ir quando se dedica tempo demais pensando desgraceiras: Várias capas de Crossed foram censuradas em diversos países por retratarem cenas impactantes demais. Por várias vezes me peguei em uns devaneios perturbadores, saindo da leitura e entrando numa bad trip imaginando as cenas e situações da HQ na vida real. É de tirar o sono...




Crossed faz The Walking Dead parecer um gibi da Disney, e acredito que 90% dos leitores não estão prontos para uma história desse tipo, mas pra quem tem estômago para ler além da maldade, desmembramentos e mutilações existe todo um cenário riquíssimo para reflexões e debates a respeito da natureza humana, imperfeita desde sempre, porém mais deturpada do que nunca nos dias atuais, desviada ao seu potencial máximo à medida que o século XXI avança em sua inexorável marcha rumo a um colapso em várias frentes. As relações humanas cada vez mais esvaziadas e desprovidas de significância, tornando o ser humano cada vez menos humano, sem empatia, sem compaixão, alguns inclusive pedindo pela tortura e morte de seus semelhantes.... peraí, será que dá pra concluir que já temos alguns desses infectados entre nós então? Infelizmente eles não têm  a cara marcada, mas o padrão mental já é praticamente o mesmo. Tsc, que bosta de constatação...








Em situações limite todo mundo vira monstro?

Em tempos monstruosos todos se tornam monstros e vemos muitas situações que reforçam esse dito no decorrer de Crossed, como a professora do jardim de infância que recorreu ao canibalismo para proteger as crianças de sua turma que ficaram sob sua responsabilidade, ou o serial killer que pede um pouco de compreensão agora que não é mais a pior coisa à solta por aí. Mas como dá pra ver no noticiário todos os dias, nem é preciso tanta coisa pra tudo descambar pra barbárie. Quanto mais nos aproximamos da beira do abismo, mais certeza eu tenho de que não vai ser necessária nenhuma infecção para começarmos a ver algumas dessas situações na vida real... Por mais desconfortável e perturbador que seja admitir isso, já existem algumas pessoas considerando Crossed tão profética quanto Idiocracy ou Mad Max. Acho que virei uma delas.







Um pequeno parêntese...

A violência de Crossed, desmedida e sem causa aparente pode lembrar o enredo de alguns filmes, como o clássico ¿Quién puede matar a un niño?, produção espanhola de 1976, dirigido por Narciso Ibañez Serrador. A película conta a história de um casal de férias que vai a uma pequena ilha mediterrânea. Lá descobrem que todos os adultos foram assassinados e as crianças são movidas apenas por atos de violência sem qualquer explicação ou motivo. Um filme que causou controvérsia na época de seu lançamento, mas ganhou status cult alguns anos depois.


¿Quién puede matar a un niño? (1976)

Também fica fácil associar Crossed ao New French Extreme, termo cunhado para designar alguns filmes transgressores de diretores franceses (duh) da virada do século XXI que resgata toda a intensidade gore de filmes de horror dos anos 70. Produções como Irreversível (2002), Fronteira(s) (2007), A Invasora (2007) e Mártires (2008), que têm como característica comum um enredo encharcado de violência explícita, muito gore e sanguinolência, mortes grotescamente criativas e uma conclusão geralmente pendendo para o pessimismo extremo. Não são filmes que qualquer um aguenta assistir. Assim como Crossed não é um gibi pra qualquer garoto de 14 anos folhear...

Haute Tension (2003)


Irreversible (2002)


À l'intérieur (2007)


Martyrs (2008)



"Não leve as coisas tão a sério, daqui a 100 anos estaremos todos mortos mesmo..."

Apesar do conteúdo pesadíssimo, Crossed fez sucesso e teve outras sequências publicadas abordando outros ângulos e personagens desse universo pavoroso. Logo após a mini série inicial, Seguiram-se as mini séries Crossed: Family Values, Crossed: Psychopath, cada uma consistindo de apenas um arco cada, e em seguida Crossed: Badlands, que chegou a 100 edições (e que a Panini deve completar por aqui em 2037). Todas essas mencionadas acima tiveram uma alta rotatividade de artistas e roteiristas, incluindo o retorno de Ennis em alguns arcos de Crossed: Badlands, além de David Lapham (Balas Perdidas), Kieron Gillen (Phonogram, The Wicked + The Divine) e Max Bemis (Cavaleiro da Lua), entre outros. Achou pouco? Também há o spin-off Crossed: Wish You Were Here, que durou cerca de quatro volumes. 





Pra acabar de estourar a cabeça de quem já acompanhava a série, em 2015 a Avatar publicou Crossed + 100, uma história ambientada 100 anos após os acontecimentos da mini série original, de autoria de Alan Moore! Crossed + 100 intensifica os elementos de uma história já instigante criando um mundo futurista perigosíssimo, com os costumes e conhecimentos do passado (nosso tempo presente) perdidos ou fragmentados, em que os sobreviventes, que vivem em pequenas comunidades isoladas umas das outras, tentam remontar um quebra cabeça histórico escavando arquivos em bibliotecas, casas e prédios abandonados. 

  


A civilização de sobreviventes que Moore desenvolve em Crossed + 100 é mais uma vez, a demonstração do 'algo mais' do roteirista em ação, aquela camada de realismo e/ou consistência acima da média que ele sempre consegue incutir em seus melhores trabalhos. Vemos uma civilização fragmentada que, apesar de forçada a um retrocesso tecnológico e acuada pelos infectados - um risco que nunca passou - estranhamente possui características mais progressistas que nossa sociedade atual, em especial com relação à orientação sexual: a monogamia inexiste e não raro vemos os personagens se envolvendo com pessoas de ambos os sexos (nada como um problema DE VERDADE batendo à sua porta pro povo parar de se preocupar com o cu alheio, né?;>)). Além disso, o aspecto patriarcal da sociedade enfraqueceu a ponto de vermos posições de líderes espirituais exclusivas do sexo masculino como, por exemplo, o Imame dos muçulmanos, sendo ocupadas por mulheres, entre outros pequenos detalhes que nos levam a uma conclusão: O futuro imaginado pelo Barbudão é uma baderna gayzista-feminista-maconhista huahuahuahuha...


Ô jovem... larga esse Walking Dead caído que aqui tem tigre também!
Além da fauna composta de animais selvagens de zoológicos destruídos que agora vivem em meio às ruínas das cidades, Moore conseguiu fazer com que os próprios infectados se tornassem um perigo ainda maior, com uma reviravolta MUITO sinistra que eleva a periculosidade deles a um novo nível. Frieza, calculismo e perversidade horripilantes no que Moore concebeu para algo que já era bem barra pesada. Além disso, preciso deixar registrado aqui o desafio à parte que é ler essa HQ, haja visto que o Bruxão, como lhe é peculiar, extrapolou a língua inglesa, criando uma nova forma do idioma, o que é perfeitamente plausível, já que se passaram 100 anos e as linguagens estão sempre em transformação. Ler o inglês que Moore cria em Crossed + 100 é tão desafiador quanto ler o primeiro conto de A Voz do Fogo, primeiro livro em prosa do autor, uma história protagonizada por uma pessoa do período neolítico que se expressava sem utilizar verbos e advérbios, entre outros elementos gramaticais aos quais estamos habituados. A língua era algo mais, digamos, tosco. Tenho pena do tradutor de Crossed + 100 quando resolverem publicá-la aqui heheheh...



Quando um tradutor morre e vai parar no Inferno, ele é condenado a traduzir isso por toda a eternidade...
Se você nunca fez como Nietzsche e encarou o proverbial abismo e tampouco viu o abismo lhe encarando de volta, a leitura de Crossed pode equivaler a essa experiência e mostrar que a humanidade não é assim tão humana quanto pensa. Fica aqui o meu alerta pra quem não gosta de histórias pesadas, com teor violento e/ou pessimista. Passem longe de Crossed para manter seu mundo cor de rosa intacto. A quem permanece curioso, desejo meus mais sinceros votos para que vocês mantenham o conteúdo de seus estômagos do lado de dentro durante a leitura dessa HQ. Não se esqueçam que eu avisei, meus amores...




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