Por
RICARDO CAVALCANTI
Sabe
aquela sensação de descobrir algo e sentir vontade de contar para
todo mundo? Pois é, isso me aconteceu quando “descobri” China
Miéville. Ao ouvir falar sobre o autor, logo me interessei em
procurar sua obra e ver se era realmente tudo o que disseram e quais
os motivos para ele ter se tornado um nome referência no chamado New
Weird. Após a leitura e resenha de A Cidade e a Cidade, resolvi encarar o
livro que é considerado pelo público e pela crítica, a obra prima
de China Miéville: Estação Perdido. Trazida pela Boitempo
Editorial, foi lançada originalmente em 2000 (quando Miéville tinha
apenas vinte e oito anos), sendo o primeiro de uma trilogia, que
incluem ainda A Cicatriz e O Conselho de Ferro, que serão lançados
também pela Boitempo. A obra fez um grande sucesso e conseguiu
atrair a atenção para este - até então - iniciante autor.
Esbanjando
uma qualidade na escrita digna de grandes autores, Miéville
constrói um mundo com tons de fantasia, steampunk, ficção
científica e com boas doses de grotesco e bizarro. Ou seja: o gênero New
Weird em sua essência. Numa cidade em que um prefeito que não tem
escrúpulos de fazer acordos com quem quer que seja, máfias agindo
impunemente e milícias que “mantêm a ordem”, ao mesmo tempo em
que trabalhadores fazem uma greve para reivindicar melhores condições
de trabalho e recebem em troca toda a força de repressão estatal.
Até aí, nada de incomum. Agora parta do ponto em que tudo isso se
passe no planeta Bas-Lag, numa cidade chamada Nova Crobuzon, repleta
de doenças e parasitas, com humanos convivendo com homens-pássaro,
insetos humanóides, homens-cacto, aranhas gigantes, pessoas punidas
com implantes de objetos inanimados em seus corpos, imigrantes
alienígenas sofrendo discriminação (no melhor estilo Distrito 9),
um autômato que passa a ter consciência, uma mariposa sugadora de
mentes, e tudo isso no meio de um ambiente urbano, sujo, repleto de
problemas e com uma nova droga de origem desconhecida.
A
história começa com Yagareck, um Garuda, que é um ser meio homem e
meio pássaro, chegando na cidade de Nova Crobuzon. Enquanto entra na
cidade, vai mostrando todo asco que sente por aquele local
deplorável. Apesar de toda repugnância que sente, sua chegada tem
um propósito: encontrar o cientista Isaac Dan der Grimnebulin, que é
um cientista que mantém pesquisas, no mínimo, incomuns. Isaac
mantém um romance secreto com Lin, uma artista da raça khepri
em que os indivíduos do sexo feminino possuem um corpo semelhante ao
de uma mulher (humana) e uma cabeça insetóide. Lin se comunica com
Isaac através de sinais.
Isaac
era conhecido como “...o cientista pária, o pensador de má
reputação que havia abandonado um cargo lucrativo de professor,
para realizar experiências ofensivas demais e brilhantes demais para
as mentes medíocres que dirigiam a universidade.” Ygareck
acredita que Isaac seria capaz de fazê-lo voltar a voar - após ter
tido suas asas arrancadas por conta de uma condenação em um
julgamento. Isaac encara a proposta do garuda como um grande desafio
e busca ampliar os seus conhecimentos sobre as possíveis formas de
fazer Yagareck voar.
A
história vai ganhando uma crescente e os problemas vão tomando
proporções cada vez maiores. China consegue nos guiar por Nova
Crobuzon mostrando o ponto de vista de cada um dos seres que existem
nessa caótica cidade. Logo em seu segundo livro, Miéville
resolveu demonstrar toda sua capacidade de escrita, nos presenteando
com um bombardeio descritivo, que nos coloca no meio da trama como se
estivéssemos lá, sentindo os cheiros dos esgotos, o vento frio na
pele, o gosto do ar, os odores misturados com lodo, fumaça, urina...
Ao fim da jornada, nenhum personagem está da mesma maneira que
começou. Todos sofrem algum tipo de transformação, seja ela física
ou psicológica (ou os dois).
Estação Perdido é um grande mosaico de histórias, mesclando as vidas, realidades e vivência de cada um dos personagens. Tudo isso se dá de uma maneira extremamente prazerosa. A sensação de ler é como a de pegar a estrada e fazer uma longa viagem em cima de uma moto. Você quer chegar ao seu destino mas, ao mesmo tempo, quer continuar aproveitando cada momento da viagem, sentindo cada cheiro e percebendo cada detalhe. Quem já teve a oportunidade de fazer isso sabe o prazer que é. Se você não está tão familiarizado com esta sensação, então deixo um pequeno trecho (texto completo aqui) do comentário do cantor, escritor, músico e poeta Fausto Fawcett sobre a obra.
“Não é um livro, é um Exu das Mestiçagens Vorazes, das encruzilhadas orgânicas, animalescas, espirituais, mentais e mecânicas, maquínicas, encarnado num objeto literário prestes a se transformar em viral perturbador. É um mergulho na promiscuidade das três instâncias que determinam a vida humana e que, na visão de China Miéville, respondem pelos nomes de mundo oculto/taumatúrgico, mundo material e mundo social/sapiencial. Mundos espirituais se entremeando com mundos humanos cheios de integração/desintegração social e de psicologia em ruínas se entrelaçando, por sua vez, com criaturas que são mosaicos de vísceras, montagens orgânicas, anatomias cubistas inoculadas com alguma inteligência artificial, mas todos se comunicando, se fundindo, se fodendo num interminável e intenso cruzamento de tecnologias antigas e recentes, e tudo é gambiarra prodigiosa movida a vapor, com fiações desencapadas, gatilhos e disjuntores criando seres transpassados prosaicamente por raciocínios humanos, dimensões sobrenaturais e frequências invisíveis. Taumatúrgons, autoconsciência, elétrons e demônios. O básico.”
Parece
uma loucura delirante, um devaneio insano de Fausto Fawcett? Ok,
entendo que ele pode ser enérgico demais para os que chegam
desavisados. Mas e se eu te falasse que o que ele disse é exatamente
o que se encontra no livro? Para melhor sintetizar então, ninguém
melhor que o escritor “gente boa”, amigão da vizinhança e amado por milhões de
leitores pelo mundo, Neil Gaiman:
“Com seu novo romance, o colossal, intricado e visceral Estação Perdido, Miéville se desloca sem esforço entre aqueles que usam as ferramentas e armas do fantástico para definir e criar a ficção do século que está por vir”
Assim
como em A Cidade e a Cidade, mais uma vez a edição merece um
destaque pela excelente tradução. Desta vez, ficou a cargo de José
Baltazar Pereira Júnior (que também traduziu Tempos Difíceis
de Charles Dickens para a Boitempo). Pela forma com que Miéville
escreve, o tradutor poderia cair facilmente em uma armadilha e acabar
descaracterizando a obra ou simplificando a forma de escrita do
autor (perdendo com isso a grande força do texto), ou aproveitando a
obra para esbanjar todo seu virtuosismo na tradução (tentando
aparecer mais que o próprio autor e correndo o risco de tornar a
leitura maçante e cansativa). Mas esse não foi o caso José
Baltazar Pereira Júnior, que nos trouxe uma tradução excelente,
digna da obra.
A
arte da capa ficou por conta de Fábio Cobiaco (que também ilustrou
a capa de A Cidade e a Cidade). Ilustrador vencedor do Prêmio Jabuti
por sua arte na obra de ficção científica V.I.S.H.N.U., que saiu
pela pela Cia. dos Quadrinhos e mais recentemente Mayo, pela Editora
Mino, Cobiaco conseguiu dar uma interessante identidade visual de forma
que, mesmo sendo diferente, é possível identificar que os dois
livros possuem alguma ligação (A Cidade e a Cidade e Estação
Perdido).
É um livro excelente, e quando termina a gente se sente um pouco órfão,
tendo que abandonar aquela cidade e seus personagens. Só espero que
A Cicatriz, o segundo livro da trilogia que se passa no mundo Bas-Lag,
não demore muito para sair. Mesmo sem eu nunca ter me interessado
muito por histórias com alguma ligação com o gênero Fantasia,
sabia que era apenas um dos elementos utilizados na obra. Não é de
se admirar que essa grande mistura do que é o chamado New Weird
ganhou na Inglaterra um solo fértil para se expandir e disseminar pelo
mundo esse novo gênero. A terra da Rainha sempre é o catalisador de
significativas transformações no campo das artes nessas últimas décadas, revelando grande
nomes na literatura como George Orwell, Anthony Burgess, Neil Gaiman,
J.R.R. Tolkien, Alan Moore, etc. Se resolvermos falar de música
então.... Beatles, Rolling Stones, Queen, Led Zeppelin, Sex Pistols,
todo o movimento Punk, Spice Girls…não, espera!! Essa última saiu
errado...rs.
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