terça-feira, 31 de outubro de 2017

MEDO E DELÍRIO EM LAS VEGAS, de Hunter S. Thompson, ou "Jornalismo Junkie"





 Por EDUARDO CRUZ



"Num mundo de ladrões, o único pecado capital é a burrice."

História verídica: Eu até já fazia uma idéia de quem era Hunter S. Thompson há um bom tempo. Desde o fim da adolescência já tinha lido um ou outro artigo sobre esse jornalista excêntrico, mas ainda assim não havia lido nenhum de seus livros. Até o dia em que fui assistir a um pocket show da banda Gente Estranha no Jardim, em uma locadora/bar cultural, na Lapa, centro do Rio de Janeiro, por volta de 2013. Chegando lá, encontramos alguns amigos, fizemos uma ou duas novas amizades e travamos contato com um casalzinho mucho mucho loco! Ele só deve ter falado três ou quatro palavras durante toda a noite, e que só fizeram sentido para ele próprio. Já ela, falava pelos cotovelos! Ambos, de olhos vidrados e pupilas dilatadas, que denunciavam muito mais do que apenas consumo de álcool em quantidades cavalares, e ela, frenética, falando sobre "Jornalismo Gonzo, Hunter S. Thompson, viver a vida no limite, um jornalismo mais subjetivo, cru e contundente", etc, etc. Isso depois de eu ter feito a gentileza de pagar uma dose de uísque para a moça, que prometeu me pagar com um poema, pra vocês sentirem o grau de doideira da menina. Pra esse contato imediato do quarto grau ficar ainda mais bizarro, eles ainda haviam nos confessado que deram um "intervalo" no programa dos 12 passos dos Narcóticos Anônimos para darem uma chegadinha ali - e mais onde seus narizes mandassem ao longo da noite. E eu paguei (inadvertidamente) um uísque para essas criaturas, garantindo assim meu lote no Inferno... Depois disso, definitivamente Thompson entrou no meu radar rs. Se esses eram os leitores do pai do Jornalismo Gonzo, eu precisava conhecer essa literatura insana!

“SOCORRO!
Por quantas outras noites, por quantas outras manhãs esquisitas essa merda ainda vai continuar? Por quanto tempo o corpo e o cérebro podem tolerar essa loucura apocalíptica? Esse ranger de dentes, esse suor jorrando, esse sangue latejando nas têmporas... pequenas veias azuis explodindo ao redor das orelhas, sessenta, setenta horas sem dormir...” 

"Pareço o Grant Morrison, mas duvido que ele tenha chegado a um décimo do que eu consumi de.... substâncias químicas."

Hunter Stockton Thompson, um norte americano de classe média do Kentucky, foi um adolescente problemático. Após a perda do pai, foi compulsoriamente alistado na Força Aérea, como pena por roubo e lá começou a exercer o ofício de jornalista. Após a dispensa, cursou a universidade de Columbia, em Nova York, onde absorveu muito da influência do Movimento Beat. Conseguiu um emprego menor na Time e foi demitido por insubordinação, e no emprego seguinte, em um jornal menor, foi dispensado pelo mesmo motivo. Em 1960, foi trabalhar para o El Sportivo, uma revista de Porto Rico, e logo após trabalhou como freelancer para diversas publicações na América Latina. Em um desses freelances na aqui na América Latina, mais precisamente no Rio de Janeiro, Thompson, a serviço do National Observer, especulou em janeiro de 1963 a respeito da frágil situação política no Brasil. "Uma revolução, mesmo uma sem armas, provavelmente viria de dentro das Forças Armadas. Além disso, ela seria bem sucedida. O presidente (João Goulart) não tem a maioria dos militares a seu lado para sobreviver a um confronto.". Seguindo a cartilha de todas as repúblicas de bananas na década de 60/70 influenciadas pelos EUA por potências estrangeiras, que estavam depondo seus líderes legitimamente eleitos e substituindo por ditadores subservientes a esses agentes externos, Thompson dá o golpe de misericórdia: "Onde a autoridade civil é fraca e corrupta, os militares tomam o poder automaticamente" .

Arte de Ralph Steadman

De volta aos EUA, publicou Rum: Diário de Um Jornalista Bêbado, mas emplacou mesmo com Hell's Angels - Medo e Delírio Sobre Duas Rodas, resultado de um ano convivendo com o clube de motociclismo mais famoso (e mal afamado) do mundo, um retrato fidedigno que cobria todos os aspectos das gangues de motociclistas, seu impacto social, na mídia e na contracultura. E falando em contracultura, Thompson esteve no centro desse caldeirão: o jornalista viveu em São Francisco nos anos 60, convivendo com toda a fauna hippie, a geração Flower Power, o Verão do Amor. Isso fez com que ele, que já bebia e fumava em quantidades sobre-humanas (uma das características de Thompson era a piteira com um cigarro sempre à boca) tivesse acesso ao haxixe, o LSD e à mescalina, entre muitas outras substâncias. É evidente que esse estilo de vida teve influência direta sobre sua escrita. No artigo O Kentucky Derby é Decadente e Depravado, publicado em 1970,  Thompson foi contratado para cobrir a tradicional corrida de cavalos em sua cidade natal, Louisville. Ao invés disso ele chutou o balde e passou quatro dias bebendo ao lado de Ralph Steadman, cartunista que ilustraria vários de seus artigos. No fim das contas, Thompson não cobriu a corrida, mas seu artigo corrosivo era recheado de críticas à sociedade sulista dos EUA, além de repleto de interferências do autor nos acontecimentos relatados, deixando a objetividade jornalística em segundo plano. Seu ponto de vista, quimicamente alterado, descaradamente parcial, predominantemente subjetivo, altamente irreverente e com intervenção direta dele no tema da pauta rompe com todos os preceitos do jornalismo dito "sério" (o que por si só é uma piada de mal gosto nos dias de hoje rs) e inaugura o Jornalismo Gonzo, sendo "gonzo" uma referência a uma gíria cunhada por descendentes de irlandeses em Boston, que designa o último homem a permanecer de pé ao fim de uma maratona alcoólica.

“O quarto ficou muito silencioso. Caminhei até o televisor e sintonizei um canal fora do ar – ruído neutro com o máximo de decibéis, uma ótima trilha para dormir, um chiado poderoso e contínuo para abafar qualquer esquisitice.”


Essa característica subversiva chamou a atenção da Revista Rolling Stone, onde, em 1971 ele publica uma série de artigos que viriam a se tornar a sua obra prima: Medo e Delírio em Las Vegas - Uma Jornada Selvagem ao Coração do sonho Americano. Em Medo e Delírio... acompanhamos Raoul Duke, pseudônimo de Thompson, que nos narra (ou pelo menos deveria) em primeira pessoa suas impressões acerca do Mint 400, uma competição motociclística no deserto de Las Vegas. 

“Basta parar na frente desta máquina fantástica, meu amigo, e por apenas 99 centavos sua imagem vai aparecer num telão de sessenta metros de altura bem no centro de Las Vegas. Pagando mais 99 centavos, você pode incluir uma mensagem gravada. “Diga o que quiser, companheiro. Todo mundo vai escutar, nem se preocupe. Você vai estar com sessenta metros de altura, lembra?

(...) Mas com essa outra viagem ninguém consegue lidar – um maluco pode entrar no Circus-Circus a qualquer hora, pagar 1 dólar e 98 e surgir de repente nos céus do centro de Las Vegas, doze vezes maior que Deus, urrando qualquer coisa que lhe vier à cabeça. Não, esta não é uma boa cidade para usar drogas psicodélicas. A própria realidade já é distorcida demais.”

Arte de Ralph Steadman


Arte de Ralph Steadman



Thompson, ou melhor, Duke, acompanhado de seu advogado Dr. Gonzo, um noiado pra ninguém botar defeito, aluga um Cadillac, apelidado carinhosamente de Grande Tubarão Vermelho, enche o porta malas de muitasmuitasMUITAS drogas, e juntos cruzam o deserto alucinados - literalmente! - apavorando caronistas, confundindo policiais rodoviários, fazendo despesas astronômicas na conta do hotel - além de destruir o quarto - estouram o limite de cartões de crédito já estourados e por fim dão um senhor calote nesse mesmo hotel, fugindo sem pagar. Ah, já falei que além disso tudo, Thompson NÃO conseguiu assistir à corrida? Ao invés de relatar o evento ele acaba, numa tentativa de perseguir e captar o sonho americano, sendo o precursor de um  estilo jornalístico inédito até então, caracterizado pelo fluxo de pensamento intenso, cheio de digressões das mais ácidas, e uma dose de surrealismo (culpa das drogas!!!). E é com essas ferramentas à mão que Duke/Thompson pinta um quadro dos EUA da era Nixon, bem no meio do coração de néon do deserto de Nevada.
"Dos trezentos dólares em dinheiro fornecidos pelos editores da revista, quase tudo já tinha sido gasto em drogas altamente perigosas. O porta-malas do carro mais parecia um laboratório móvel do departamento de narcóticos. Tínhamos dois sacos de maconha, 75 bolinhas de mescalina, cinco folhas de ácido de alta concentração, um saleiro cheio até a metade com cocaína e mais uma galáxia inteira de pílulas multicoloridas, estimulantes, tranquilizantes, berrantes, gargalhantes... além de um litro de tequila, outro de rum, uma caixa de Budweiser, meio litro de éter puro e duas dúzias de amilas (...) Não que precisássemos de tudo aquilo para a viagem, mas, quando alguém se dedica de verdade à tarefa de montar um suprimento de drogas, a tendência é levar a coisa a sério."

Ilustrando, fica mais ou menos assim. Dá pra passar um belo fim de semana antes de cair duro...

“É estranho sentar num hotel de Las Vegas às quatro da manhã – curvado sobre a mesa diante de um caderno de anotações e um gravador, numa suíte com diária de 75 dólares e uma conta astronômica de serviço de quarto acumulada em 48 horas de completa loucura – sabendo que você vai fugir sem pagar um centavo assim que começar a amanhecer... vai atravessar o saguão, pedir que tragam seu conversível vermelho da garagem e esperar, carregando uma valise cheia de maconha e armas ilegais... tentando agir com naturalidade, folheando a edição matinal do Las Vegas Sun.”
 
“Mas nossa viagem era diferente. Era uma afirmação clássica de tudo que é correto, verdadeiro e decente no caráter nacional. Era uma saudação grosseira e material às possibilidades fantásticas da vida neste país – disponíveis apenas para quem realmente tem coragem. E isso nós tínhamos de sobra.”


O livro é dividido em duas partes: A primeira escrita no calor da Mint 400, como já citei acima, e a segunda - pasmem! - em que a Rolling Stone incumbe Hunter de cobrir a Conferência Nacional Sobre Entorpecentes e Drogas Perigosas, onde ele Dr. Gonzo sacaneiam, aterrorizam e hostilizam diversos agentes da lei dentre os milhares que convergiram para Las Vegas para prestigiar o evento. Nas palavras de Thompson/Duke:

“Mas desta vez nossa simples presença seria um escândalo. Participaríamos da conferência sob falsos pretextos, lidando desde o início com um grupo de pessoas que se reunia com o propósito explícito de botar na cadeia pessoas como nós. Éramos a ameaça – usuários descarados de drogas, sem disfarce, com intenções nítidas de ir até o fim em seu plano de armar algo muito demente... sem nenhuma intenção de provar qualquer argumento definitivo ou sociológico, e nem mesmo rir da coisa toda: era antes de mais nada uma questão de estilo de vida, uma obrigação, até mesmo um senso de dever. Se os Porcos estavam se reunindo em Las Vegas para uma importante Conferência sobre Drogas, nada mais justo que a cultura das drogas mandasse representantes.”

E onde o legado de Thompson se faz mais visível na cultura de massas? De cabeça, me lembro dessas obras: 


1 - Medo e Delírio em Hollywood:

A adaptação cinematográfica de Medo e Delírio em Las Vegas, dirigido por Terry Gilliam (Os 12 Macacos, Brazil - O Filme, Monty Python em Busca do Cálice Sagrado), com um Johnny Depp que ainda não havia entrado no piloto automático no papel de Raoul Duke/Hunter Thompson e um Benicio Del Toro fantasticamente noiado e sem freios como Doutor Gonzo. A adaptação é excelente, capturando toda a alucinação e intensidade do que Thompson relatou no livro. Recomendadíssimo!







2 - Spider Gonzo:

Nos anos 90, o roteirista Warren Ellis criou, ao lado do artista Darick Robertson, a HQ cyberpunk Transmetropolitan, onde acompanhamos Spider Jerusalem, um repórter em um futuro distópico, que luta contra a corrupção e o abuso de poder de dois candidatos à presidência dos EUA ao lado de suas assistentes. Pelo teor ácido e altamente sarcástico dos textos que Jerusalem tece a respeito de política e da sociedade em suas matérias jornalísticas, além das quantidades absurdas de cigarros, álcool e as drogas que Spider consome quase 24 horas por dia, o leitor que conhece a vida e obra de Thompson bate de frente com uma das melhores homenagens já feitas ao repórter.

 



3 - Transmetroplanetary:

Ainda focando no trabalho de Ellis, que percebe-se, é um grande fã de Thompson, em sua outra obra-prima série, Planetary, na história "Nada como a Inglaterra no verão", edição nº7, o personagem Jack Carter aparece no final da história com um visual que remete ao de Spider Jerusalem. A referência da referência! Uma referência de segunda mão, de segunda geração. Quase um Inception dos gibis rs!

Capa de Planetary #7
 
Metamorfose ambulante: de Constantine...
... a Spider Jerusalem em 24 páginas!

4 - Graphic Novel: 

Em outubro de 2015 a editora independente Top Shelf publicou a quadrinização do livro, adaptado pelo cartunista Troy Little. Com um traço bem solto, descontraído e cartunesco que me fez lembrar bastante do Gustavo Duarte, a arte combinou bem com toda a sequência alucinada de aventuras bizarras de Raoul Duke e Dr. Gonzo. No site da editora dá pra encontrar a graphic novel à venda AQUI.




Junkiebox:
“Aumente o rádio. Aumente o gravador. Veja o pôr do sol. Abra as janelas para saborear o vento frio do deserto. Ah, sim. É isso aí. Controle total. Cruzando a rua principal numa sábado à noite em Vegas, dois bons camaradas num conversível vermelho-sangue... chapados, detonados, alucinados... Gente boa.”

A seguir uma pequena playlist com base nas músicas citadas em Medo e Delírio em Las Vegas para embalar a sua leitura desse clássico junkie. Já as substâncias a serem consumidas durante a leitura ficam a critério do leitor. O maître recomenda chá de fita cassete com cogumelos mágicos, daqueles que brotam da bosta de vaca...



Brewer and Shipley - One Toke Over The Line
""Cara, é assim que se viaja", comentou meu advogado, e se inclinou para aumentar o volume do rádio. Cantarolou a melodia e meio que resmungou a letra: "One toke over the line, Sweet Jesus... One toke over the line..."



 
 
John Lennon - Power To The People
"Ele estava virando a fita. O rádio gritava: "Power to the People - Right On!". A canção política de John Lennon, dez anos atrasada. "Esse pobre infeliz não deveria ter saído de onde estava", comentou meu advogado. "Esses vagabundos só atrapalham quando tentam falar sério."




Three Dog Night - Joy To The World
“Quando voltei, meu advogado estava na banheira. Submerso em água verde – o subproduto gorduroso de sais de banho japoneses comprados na loja de presentes do hotel. Ao lado da banheira, um rádio AM/FM novinho, ligado na tomada do barbeador elétrico. Volume máximo. Era uma bobagem de uns sujeitos chamados “Three Dog Night”, falando sobre um sapo chamado Jeremiah que deseja “alegria ao mundo”.”







The Rolling Stones - Sympathy For The Devil
“O rum será essencial para suportar esta noite e passar a limpo estas anotações, este diário vergonhoso... com o gravador se esgoelando a noite inteira no volume máximo: “Allow me to introduce myself... I’m a man of wealth and taste”.”







Bob Dylan - Stuck Inside of Mobile With The Memphis Blues Again
"Aaawww Mama, can this really be the end?..."
(título do capítulo 11, inspirado em "Stuck Inside of Mobile With The Memphis Blues Again", de Bob Dylan.)




The Beatles - Lucy In The Sky With Diamonds
""Não teve jeito", ele respondeu, indicando a garota-buldogue com a cabeça. "Essa é Lucy." Deu risada, viajando. "Com em 'Lucy in the Sky with Diamonds', sabe..."




Simon and Garfunkel - Like a Bridge Over Troubled Water
"E agora é a jukebox! Sim, não há dúvidas... e por que não? É uma canção muito popular: "Like a bridge over troubled water... I will lay me down".




Robert Johnson - Love In Vain
""When the train... come in the station... I looked her in the eye..."
Música sinistra no aeroporto.
"Yes, it's hard to tell it's hard to tell, when all your love's in Vain...""



Hunter Thompson foi um produto direto da geração do Verão do Amor, um sonho de transformação mundial que azedou na década seguinte, e o que era a expansão da consciência através das drogas da estimulação química degenerou para consumo excessivo, adição e vidas irremediavelmente prejudicadas. De Timothy Leary a Charles Manson, a geração Flower Power definhou e entrou para a história. Restou a um de seus contemporâneos investigar o tal sonho americano através de uma forma de jornalismo sem precedentes, interagindo e interferindo - muitas vezes de maneira insana - com o seu objeto de investigação, vivenciando situações e conhecendo pessoas mais bizarras do que ele próprio, e por conseguinte, traçando um mapa da América sob esse prisma da cultura das drogas, que se transformou por diversas vezes desde então, mas que ainda existe, porém sem um cronista tão afiado e brilhante quanto Hunter Thompson para registrá-la nos dias de hoje. E não me venham falar em (im)parcialidade jornalística. Não com essa imprensa infecta que somos obrigados a engolir hoje em dia. Um Hunter Thompson chapado até a alma é mais confiável como jornalista do que toda essa mídia supostamente "certinha" que vemos hoje em dia! 

"... Por que se dar ao trabalho de ler jornais, se isso é tudo que têm a oferecer? A imprensa é uma gangue de covardes impiedosos. Jornalismo não é uma profissão, não é nem mesmo um ofício. É uma saída barata para vagabundos e desajustados - uma porta falsa que leva à parte dos fundos da vida, um buraquinho imundo e cheio de mijo, fechado com tábuas pelo inspetor de segurança, mas fundo o bastante para comportar um bêbado deitado que fica olhando para a calçada e se masturbando como um chimpanzé numa jaula de zoológico."






quinta-feira, 19 de outubro de 2017

JANTAR SECRETO, de Raphael Montes, ou "E no menu de hoje: Carne de gaivota!"






Por EDUARDO CRUZ



"O paladar é o único sentido isento das questões éticas que governam os demais. Imagine um performer que mutila um animal numa galeria de arte ou um músico que tortura um animal, porque acha o som agradável... Casos impensáveis! Ainda assim, há anos, nós matamos, mutilamos e torturamos animais simplesmente porque eles são saborosos. As pessoas toleram muito sofrimento em sua comida. Em nome do paladar, tudo é possível, meu amigo."

Se já não falei isso antes, lá vai: o terror/horror, pra ser minimamente decente, pra fazer fagulhas, encher a barriga e arrebatar o leitor precisa estar encharcado de crítica social. Esse gênero, independente do recurso narrativo que o autor decida utilizar, por mais grandiosa que seja a ameaça concebida, o antagonista, enfim, todo o horror per se nada mais é do que uma máscara grotesca, surreal, metafísica, brutal, que denuncia, aponta, faz comentários sobre algum outro horror mais corriqueiro, alguma coisa tão naturalizada no cotidiano que sequer enxergamos como horror. Mas que deveria ser vista exatamente dessa forma. Como horror. 

Um dos horrores ocultos da nossa sociedade. Isso a gente não vê no MasterChef.
 



George Romero, o imortal
George Romero, por exemplo, fez isso de forma magistral com seus (quatro primeiros) filmes de zumbis, apontando o consumismo cada vez mais crescente que marcou a geração dos baby boomers, por intermédio de seus zumbis devoradores; Ou H. P. Lovecraft, com seu racismo e xenofobia quase que involuntários, que de certa forma acabaram servindo a esse fim de denunciar um subtexto de segregação entre as camadas de seu cosmicismo; Ou ainda o brasileiro Carlos Orsi, que em seu último livro, Mistérios do Mal (que já resenhamos aqui) também acerta nesse
Carlos Orsi
quesito do comentário social travestido de horror em alguns de seus contos. Enfim, (bons) exemplos de horror atrelado a crítica social não faltam por aí, e saber amarrar um ao outro enriquece muito a história que o autor quer contar, em termos de mordacidade e impacto causado no leitor. Talvez por uma questão de hábito, ou pela diferença nítida de qualidade entre as histórias que possuem esse recurso e as que não possuem, tenho a convicção pessoal de que me parece o jeito certo de escrever horror rs.





Ainda sobre autores que exercem essa fascinante arte do horror e comentário social enredados em perfeita harmonia, falemos um pouco sobre Raphael Montes. Esse carioca, nascido em 1990, estreou no meio literário com Suicidas (2012), seu primeiro romance, seguido de Dias Perfeitos (2014), ambos já com os direitos vendidos para uma adaptação cinematográfica (Muito medo disso. E pelas razões erradas rs). Para a minha infinita vergonha, ainda não havia lido nada do rapaz - apesar de já ver seu nome por aí há bastante tempo - até ler a sinopse de Jantar Secreto, lançado em novembro passado. E só essa sinopse já me deixou pilhado o bastante para cravar meus dentes nesse livro, então aqui estamos nós, prestes a destrinchar essa história. 

1, 2, 3 e VAMOS LÁ!


Em Jantar Secreto acompanhamos a trajetória de quatro amigos de infância, oriundos da cidade de Pingo D'água, no Paraná, que prestam vestibular e vêm estudar no Rio de Janeiro. Dante cursa administração, Miguel estuda medicina, Hugo cursa gastronomia e Leitão estudaria ciências da computação. Alguns anos passam, e todos - com exceção de Leitão - já estão formados, mas o sonho dourado na cidade maravilhosa não saiu bem como o esperado: Dante trabalha como vendedor em uma livraria; Miguel rala pesado fazendo residência em um hospital público e sobrevive graças a uma minguada bolsa do governo; Hugo presta serviços a um pequeno buffet após um incidente que lhe fechou as portas no meio gastronômico e Leitão passa os dias trancado em seu quarto navegando na internet, comendo compulsivamente, fumando maconha, jogando videogame e aplicando pequenos golpes online. Depois de um vacilo feio de um dos quatro, o grupo se encontra seriamente endividado, o que faz com que os amigos corram o risco de serem despejados do apartamento que dividem em Copacabana, quando Leitão propõe uma idéia absurda: promover jantares em seu apartamento para pessoas de fino trato, com a carne mais abundante no planeta, porém extremamente exótica, em um ato inadmissível para a maioria das pessoas: a carne humana. 


“O Brasil já exporta muita coisa. Carnaval, futebol, caipirinha e mulata. Mulher gostosa, puta. Está na hora de exportar gastronomia. Tem gente de sobra no mundo. A China está toda fodida com a superpopulação. A África, a Índia... Já viu quanto mendigo tem por aí? E as favelas? Parecem formigueiros! Ainda tem essa cambada que vagabundeia e vive de subsídio do governo. Bolsa Família, cotas, nem sei mais o quê. Pega essa gente toda e fatia. Faz bife. Carpaccio. Pobre à milanesa. Vai revolucionar a cozinha no mundo. E vai dar uma esvaziada boa, uma limpada.”
 

Apesar da situação extremamente bizarra e dos percalços para conseguirem o... ingrediente principal, o jantar é um sucesso, atraindo membros da nata da elite carioca, entre eles Umberto Marcondes de Machado, um velho playboy decadente que propõe uma sociedade aos rapazes. A partir deste momento, o que já era imoral e impensável alcança níveis blasfemos, tudo em nome do lucro e da vaidade, vemos que nem todos os seres humanos são iguais e que toda refeição tem um preço, pago em dor e sofrimento. 

"(...) Eu comia carne desde criança, não comia? Nunca me importei com o sofrimento do boi, com a tortura do ganso, nunca perdi um segundo de sono em homenagem aos porcos e aos frangos que devorei ao longo de toda a minha existência." 


Que dedos estranhos...


“A verdade é que você não precisa comer carne humana para incentivar atos monstruosos, basta curtir um bife e uma lingüiça que já está dando sua contribuição para o horror.”

Dante é um retrato do jovem no Brasil atual, onde a moral é flexível e a ética é um mero entrave para engrenar em uma carreira de sucesso no mercado de trabalho. O importante é quanto se fatura no fim do dia, não importando o rastro de sangue que se deixa pelo caminho. Um Dante sem um Virgílio para guiá-lo nesse inferno, em uma alusão à Divina Comédia. Hugo é seduzido pelo prestígio e o reconhecimento que seu "trabalho" lhe proporciona, colocando seu ego acima de todo o resto. Leitão é completamente apático e vive apenas o momento, enclausurado em seu quarto, vivenciando o mundo através da Internet e viciado em satisfação imediata e auto gratificação, um traço típico da geração Z, que exige sempre tudo AGORA. Cada um dos amigos reflete uma faceta diferente da condição atual da juventude brasileira contemporânea, à deriva, sem referencial nem ideais - uma característica que os jovens costumavam ter antigamente, lembram? - e tendo que sobreviver no voracíssimo mercado de trabalho. Mas tudo, bem, o mercado é legal, ele se autorregula. Não precisa se preocupar, amiguinho! o capitalismo não mata ninguém!
“Doutor no Brasil não tem doutorado, tem dinheiro.”

A violência extrema ao longo da história, e o fato de Raphael Montes conseguir vender os direitos para a adaptação cinematográfica de livro após livro me fez imaginar: que cineasta brasileiro seria capaz de captar todo essa carnificina, que é o cerne da história, sem perder de vista todo o rico subtexto social da trama? Só me vem à cabeça o diretor Dennison Ramalho, que já cometeu as belas atrocidades Amor Só de Mãe (2003) e Ninjas (2010). Quem já assistiu a algum dos curtas de mais esse talento subestimado, dentre tantos em nosso país, sabe que não tem ninguém mais capacitado por aí. Nosso cinema de horror poderia estar em situação muito melhor, mas acho que estou repetindo aquele velho discurso "valorizem-os-Zés-do-Caixão!" rs...


Amor Só de Mãe (Dennison Ramalho, 2003)





Ninjas (Dennison Ramalho, 2010)


O desenvolvimento dos personagens é excelente, e não há aquela sensação de que ninguém foi mal explorado, dos principais aos secundários, como Cora ou Arthur. Há também menções a cultura pop que ambientam confortavelmente o leitor dentro da trama, pontuais e discretas mas que arrancam uma risadinha ou outra do leitor, como por exemplo, o momento em que Dante diz para si mesmo que "O inverno está chegando", ou quando o autor dá uma alfinetada na fórmula Marvel no gênero de filmes de super-heróis: 


““Combinei com o fofoluxo de ver algum filme de super-herói no cinema pra me distrair.”

“Qual”

“Não sei, tanto faz. É tudo igual.””

O clímax da história é sangrento como nunca vi em nenhum autor nacional. Ou melhor, nunca vi um clímax assim tão sangrento em nada do que li até hoje. Uma cena dantesca - juro que esse saiu sem querer rs! - que faria o Leatherface de O Massacre da Serra Elétrica se sentir em casa (e sim, há uma serra elétrica na história. Não falta nada!). E ainda com uma playlist altamente inusitada ao fundo tocando enquanto a cena se desenrola, onde as canções se adequam num contraponto perverso ao que está ocorrendo no recinto. Nunca mais vou escutar I Will Always Love You da Whitney Houston, ou Wave do Tom Jobim, Isn't She Lovely? do Stevie Wonder e Every Breath You Take do Police da mesma maneira novamente...
“As pessoas vinculam loucura a maldade e racionalidade a bondade. Segundo estatísticas, doze por cento das pessoas ditas normais são criminosas, assassinas ou perigosas. Enquanto isso, só três por cento das pessoas ditas loucas têm potencial ofensivo considerável. Isso significa que normais matam muito mais do que loucos. Se no mundo houvesse mais loucos, haveria menos violência.”


 
Quando vi o plot básico de Jantar Secreto descrito na Internet, comecei a digerir um monte de possibilidades e fazer conexões e associações. Vejam que bizarro, organizar jantares antropofágicos clandestinos, servidos para a elite carioca, em nome da ostentação e exotismo que a elite adora usar como traço distintivo, o bom e velho ter >>> ser. E ainda mais: os excluídos, os pobres, os negros, literalmente no menu??? isso excitou minha imaginação ao ponto de pensar que genial seria essa imagem grotesca como metáfora perfeita de nossa situação há mais de 500 anos atual. Os abastados sempre consumiram os menos favorecidos nesse país de uma maneira ou de outra, então por que não partir pros finalmentes e fazer as coisas ao pé da letra? Afinal, estamos em um dos países com desigualdade social mais acentuada do mundo! 


“Outro casal que vai curtir férias em Ilha Grande. (...) Mas esses são pretos, estão num Corsa velho e, considerando o que estavam escutando no rádio, são dois fodidos. Ninguém vai sentir falta.”
 
 


“Como entrada, ele preparava ossobucos com a canela e a panturrilha, terrines com o fígado, miolos fritos à milanesa e rins ensopados ou como recheio de tortas de massa folheada. Apesar de duros, os músculos das costas se prestavam para cocções longas, ficando suculentos e cheios de sabor. O tutano dos ossos, retirado da coluna vertebral ou dos ossos longos das pernas, também era aproveitado: virava caldo, jus, redução ou molho. A pele frita ficava deliciosamente crocante e a barriga quando curada, salgada ou defumada chegava ao divino sabor do bacon.”



Criei muitas expectativas com esse livro, e estou surpreso em dizer que Raphael Montes preencheu todas elas e ainda extrapolou algumas mais, e acho que isso nunca me aconteceu antes com livro algum, pelo menos não como com Jantar Secreto. Todo mundo já passou por aquele momento em que força a imaginação a trabalhar ao ler a sinopse de um livro ou filme, tentando imaginar como seria a história, se ficaria satisfeito caso decidisse embarcar naquela história. Algumas vezes, a coisa é exatamente como você imagina em grande parte, e mesmo assim você odiou o livro; às vezes não é nem um pouco como você esperava, e você adora. Em Jantar Secreto o autor evocou várias imagens e símbolos e deu conta dos assuntos que se propôs a tocar: a violência de toda a carne, seja a carne cultivada para consumo, criada e abatida em condições pavorosas (olha o horror da vida real aí!), bem como a carne comercializada no sentido sexual, na atividade da prostituição, como a personagem Cora comenta em uma passagem:

"(...) Puta é a comida a quilo mais barata que existe. Sessenta quilos por seiscentos reais. Sai dez reais o quilo. Onde mais você consegue esse preço?"

Contundente, porém sem ser excessivamente panfletário ou "engachato", Jantar Secreto entra fácil fácil no meu top 5 das melhores leituras de 2017. Um prato cheio! Eu, pessoalmente, estou bem satisfeito com esse banquete, mas com certeza vou repetir qualquer dia desses. Afinal, esse é um gosto adquirido... e viciante!



“Comida não tem nada a ver com razão. Muito menos com consciência. Por que você come carne de vaca, por exemplo? Ou melhor, por que raspou o prato de rosbife? Porque foi criado assim! É uma realidade cotidiana! A carne satisfaz, tem sabor e aparência agradáveis. Logo, comemos! O que tem de errado nisso? Absolutamente nada. Com um pouquinho de esforço, em duas gerações comer carne humana vai ser como devorar ovos e bacon pela manhã.”
 
Parece delicioso...