Por EDUARDO CRUZ
"O paladar é o único sentido isento das questões éticas que governam os demais. Imagine um performer que mutila um animal numa galeria de arte ou um músico que tortura um animal, porque acha o som agradável... Casos impensáveis! Ainda assim, há anos, nós matamos, mutilamos e torturamos animais simplesmente porque eles são saborosos. As pessoas toleram muito sofrimento em sua comida. Em nome do paladar, tudo é possível, meu amigo."
Se já não falei isso antes, lá vai: o terror/horror, pra ser minimamente decente, pra fazer fagulhas, encher a barriga e arrebatar o leitor precisa estar encharcado de crítica social. Esse gênero, independente do recurso narrativo que o autor decida utilizar, por mais grandiosa que seja a ameaça concebida, o antagonista, enfim, todo o horror per se nada mais é do que uma máscara grotesca, surreal, metafísica, brutal, que denuncia, aponta, faz comentários sobre algum outro horror mais corriqueiro, alguma coisa tão naturalizada no cotidiano que sequer enxergamos como horror. Mas que deveria ser vista exatamente dessa forma. Como horror.
Um dos horrores ocultos da nossa sociedade. Isso a gente não vê no MasterChef. |
George Romero, o imortal |
Carlos Orsi |
Ainda sobre autores que exercem essa fascinante arte do horror e comentário social enredados em perfeita harmonia, falemos um pouco sobre Raphael Montes. Esse carioca, nascido em 1990, estreou no meio literário com Suicidas (2012), seu primeiro romance, seguido de Dias Perfeitos (2014), ambos já com os direitos vendidos para uma adaptação cinematográfica (Muito medo disso. E pelas razões erradas rs). Para a minha infinita vergonha, ainda não havia lido nada do rapaz - apesar de já ver seu nome por aí há bastante tempo - até ler a sinopse de Jantar Secreto, lançado em novembro passado. E só essa sinopse já me deixou pilhado o bastante para cravar meus dentes nesse livro, então aqui estamos nós, prestes a destrinchar essa história.
1, 2, 3 e VAMOS LÁ! |
Em Jantar Secreto acompanhamos a trajetória de quatro amigos de infância, oriundos da cidade de Pingo D'água, no Paraná, que prestam vestibular e vêm estudar no Rio de Janeiro. Dante cursa administração, Miguel estuda medicina, Hugo cursa gastronomia e Leitão estudaria ciências da computação. Alguns anos passam, e todos - com exceção de Leitão - já estão formados, mas o sonho dourado na cidade maravilhosa não saiu bem como o esperado: Dante trabalha como vendedor em uma livraria; Miguel rala pesado fazendo residência em um hospital público e sobrevive graças a uma minguada bolsa do governo; Hugo presta serviços a um pequeno buffet após um incidente que lhe fechou as portas no meio gastronômico e Leitão passa os dias trancado em seu quarto navegando na internet, comendo compulsivamente, fumando maconha, jogando videogame e aplicando pequenos golpes online. Depois de um vacilo feio de um dos quatro, o grupo se encontra seriamente endividado, o que faz com que os amigos corram o risco de serem despejados do apartamento que dividem em Copacabana, quando Leitão propõe uma idéia absurda: promover jantares em seu apartamento para pessoas de fino trato, com a carne mais abundante no planeta, porém extremamente exótica, em um ato inadmissível para a maioria das pessoas: a carne humana.
“O Brasil já exporta muita coisa. Carnaval, futebol, caipirinha e mulata. Mulher gostosa, puta. Está na hora de exportar gastronomia. Tem gente de sobra no mundo. A China está toda fodida com a superpopulação. A África, a Índia... Já viu quanto mendigo tem por aí? E as favelas? Parecem formigueiros! Ainda tem essa cambada que vagabundeia e vive de subsídio do governo. Bolsa Família, cotas, nem sei mais o quê. Pega essa gente toda e fatia. Faz bife. Carpaccio. Pobre à milanesa. Vai revolucionar a cozinha no mundo. E vai dar uma esvaziada boa, uma limpada.”
Apesar da situação extremamente bizarra e dos percalços para conseguirem o... ingrediente principal, o jantar é um sucesso, atraindo membros da nata da elite carioca, entre eles Umberto Marcondes de Machado, um velho playboy decadente que propõe uma sociedade aos rapazes. A partir deste momento, o que já era imoral e impensável alcança níveis blasfemos, tudo em nome do lucro e da vaidade, vemos que nem todos os seres humanos são iguais e que toda refeição tem um preço, pago em dor e sofrimento.
"(...) Eu comia carne desde criança, não comia? Nunca me importei com o sofrimento do boi, com a tortura do ganso, nunca perdi um segundo de sono em homenagem aos porcos e aos frangos que devorei ao longo de toda a minha existência."
Que dedos estranhos... |
“A verdade é que você não precisa comer carne humana para incentivar atos monstruosos, basta curtir um bife e uma lingüiça que já está dando sua contribuição para o horror.”
Dante é um retrato do jovem no Brasil atual, onde a moral é flexível e a ética é um mero entrave para engrenar em uma carreira de sucesso no mercado de trabalho. O importante é quanto se fatura no fim do dia, não importando o rastro de sangue que se deixa pelo caminho. Um Dante sem um Virgílio para guiá-lo nesse inferno, em uma alusão à Divina Comédia. Hugo é seduzido pelo prestígio e o reconhecimento que seu "trabalho" lhe proporciona, colocando seu ego acima de todo o resto. Leitão é completamente apático e vive apenas o momento, enclausurado em seu quarto, vivenciando o mundo através da Internet e viciado em satisfação imediata e auto gratificação, um traço típico da geração Z, que exige sempre tudo AGORA. Cada um dos amigos reflete uma faceta diferente da condição atual da juventude brasileira contemporânea, à deriva, sem referencial nem ideais - uma característica que os jovens costumavam ter antigamente, lembram? - e tendo que sobreviver no voracíssimo mercado de trabalho. Mas tudo, bem, o mercado é legal, ele se autorregula. Não precisa se preocupar, amiguinho! o capitalismo não mata ninguém!
“Doutor no Brasil não tem doutorado, tem dinheiro.”
A violência extrema ao longo da história, e o fato de Raphael Montes conseguir vender os direitos para a adaptação cinematográfica de livro após livro me fez imaginar: que cineasta brasileiro seria capaz de captar todo essa carnificina, que é o cerne da história, sem perder de vista todo o rico subtexto social da trama? Só me vem à cabeça o diretor Dennison Ramalho, que já cometeu as belas atrocidades Amor Só de Mãe (2003) e Ninjas (2010). Quem já assistiu a algum dos curtas de mais esse talento subestimado, dentre tantos em nosso país, sabe que não tem ninguém mais capacitado por aí. Nosso cinema de horror poderia estar em situação muito melhor, mas acho que estou repetindo aquele velho discurso "valorizem-os-Zés-do-Caixão!" rs...
Amor Só de Mãe (Dennison Ramalho, 2003)
Ninjas (Dennison Ramalho, 2010)
O desenvolvimento dos personagens é excelente, e não há aquela sensação de que ninguém foi mal explorado, dos principais aos secundários, como Cora ou Arthur. Há também menções a cultura pop que ambientam confortavelmente o leitor dentro da trama, pontuais e discretas mas que arrancam uma risadinha ou
outra do leitor, como por exemplo, o momento em que Dante diz para si mesmo que "O inverno está chegando", ou quando o autor dá uma alfinetada na fórmula Marvel no gênero de filmes de super-heróis:
““Combinei com o fofoluxo de ver algum filme de super-herói no cinema pra me distrair.”
“Qual”
“Não sei, tanto faz. É tudo igual.””
O clímax da história é sangrento como nunca vi em nenhum autor nacional. Ou melhor, nunca vi um clímax assim tão sangrento em nada do que li até hoje. Uma cena dantesca - juro que esse saiu sem querer rs! - que faria o Leatherface de O Massacre da Serra Elétrica se sentir em casa (e sim, há uma serra elétrica na história. Não falta nada!). E ainda com uma playlist altamente inusitada ao fundo tocando enquanto a cena se desenrola, onde as canções se adequam num contraponto perverso ao que está ocorrendo no recinto. Nunca mais vou escutar I Will Always Love You da Whitney Houston, ou Wave do Tom Jobim, Isn't She Lovely? do Stevie Wonder e Every Breath You Take do Police da mesma maneira novamente...
“As pessoas vinculam loucura a maldade e racionalidade a bondade. Segundo estatísticas, doze por cento das pessoas ditas normais são criminosas, assassinas ou perigosas. Enquanto isso, só três por cento das pessoas ditas loucas têm potencial ofensivo considerável. Isso significa que normais matam muito mais do que loucos. Se no mundo houvesse mais loucos, haveria menos violência.”
Quando vi o plot básico de Jantar Secreto descrito na Internet, comecei a digerir um monte de possibilidades e fazer conexões e associações. Vejam que bizarro, organizar jantares antropofágicos clandestinos, servidos para a elite carioca, em nome da ostentação e exotismo que a elite adora usar como traço distintivo, o bom e velho ter >>> ser. E ainda mais: os excluídos, os pobres, os negros, literalmente no menu??? isso excitou minha imaginação ao ponto de pensar que genial seria essa imagem grotesca como metáfora perfeita de nossa situação
“Outro casal que vai curtir férias em Ilha Grande. (...) Mas esses são pretos, estão num Corsa velho e, considerando o que estavam escutando no rádio, são dois fodidos. Ninguém vai sentir falta.”
“Como entrada, ele preparava ossobucos com a canela e a panturrilha, terrines com o fígado, miolos fritos à milanesa e rins ensopados ou como recheio de tortas de massa folheada. Apesar de duros, os músculos das costas se prestavam para cocções longas, ficando suculentos e cheios de sabor. O tutano dos ossos, retirado da coluna vertebral ou dos ossos longos das pernas, também era aproveitado: virava caldo, jus, redução ou molho. A pele frita ficava deliciosamente crocante e a barriga quando curada, salgada ou defumada chegava ao divino sabor do bacon.”
Criei muitas expectativas com esse livro, e estou surpreso em dizer que Raphael Montes preencheu todas elas e ainda extrapolou algumas mais, e acho que isso nunca me aconteceu antes com livro algum, pelo menos não como com Jantar Secreto. Todo mundo já passou por aquele momento em que força a imaginação a trabalhar ao ler a sinopse de um livro ou filme, tentando imaginar como seria a história, se ficaria satisfeito caso decidisse embarcar naquela história. Algumas vezes, a coisa é exatamente como você imagina em grande parte, e mesmo assim você odiou o livro; às vezes não é nem um pouco como você esperava, e você adora. Em Jantar Secreto o autor evocou várias imagens e símbolos e deu conta dos assuntos que se propôs a tocar: a violência de toda a carne, seja a carne cultivada para consumo, criada e abatida em condições pavorosas (olha o horror da vida real aí!), bem como a carne comercializada no sentido sexual, na atividade da prostituição, como a personagem Cora comenta em uma passagem:
"(...) Puta é a comida a quilo mais barata que existe. Sessenta quilos por seiscentos reais. Sai dez reais o quilo. Onde mais você consegue esse preço?"
Contundente, porém sem ser excessivamente panfletário ou "engachato", Jantar Secreto entra fácil fácil no meu top 5 das melhores leituras de 2017. Um prato cheio! Eu, pessoalmente, estou bem satisfeito com esse banquete, mas com certeza vou repetir qualquer dia desses. Afinal, esse é um gosto adquirido... e viciante!
“Comida não tem nada a ver com razão. Muito menos com consciência. Por que você come carne de vaca, por exemplo? Ou melhor, por que raspou o prato de rosbife? Porque foi criado assim! É uma realidade cotidiana! A carne satisfaz, tem sabor e aparência agradáveis. Logo, comemos! O que tem de errado nisso? Absolutamente nada. Com um pouquinho de esforço, em duas gerações comer carne humana vai ser como devorar ovos e bacon pela manhã.”
mtoo bom!
ResponderExcluirJá tinha visto o amor só e mãe! não sabia que tinha online
E não tinha! Alguma alma bondosa disponibilizou. Não canso de ver esse curta, e inclusive tenho alguns amigos barbados que se cagam de medo desse curta, acredita? hahahahahahah
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