O PERFURANEVE, de Lob + Rochette + LeGrand, ou "Próxima parada: Extinção. Observe atentamente o vão entre o trem e a plataforma."
Por EDUARDO CRUZ
"Percorrendo a branca imensidão de um eterno e congelante inverno de solidão, corre, de uma ponta à outra da Terra, um trem cujo movimento nunca se encerra...
É o Expresso Perfuraneve, com seus mil e um vagões.
É o último bastião da civilização!"
Ninguém sabe ao certo como começou: se foi por causa da guerra, se foi um acidente, ou um cataclismo natural. De repente, em uma tarde de verão, um vento gelado varreu tudo, e o mundo mergulhou em uma nova era glacial, matando toda a vida na Terra. Os únicos sobreviventes agora residem em um trem, que permanece em movimento perpétuo. E dentro dele, as últimas pessoas da Terra tentam seguir com algum tipo de vida, confinados entre os vagões, mas ainda agarrados a estruturas do velho mundo.
"Neste mundo fechado e dividido tanto os abastados quanto os perdidos têm como horizonte, única e somente, as paredes e limites de vagões e mentes." A sociedade deste trem se divide entre os "Vagões Dourados", onde vive a elite, com poderes e privilégios plenos, os vagões centrais, onde residem cidadãos de uma espécie de classe média, e os vagões do fundo, onde os habitantes vivem à míngua, completamente isolados num gueto, sem comunicação com o restante do trem. Uma divisão social rígida e opressora, e que dispõe de muitos artifícios para que o status quo seja perpetuado, tais como religião, jogos de azar, prostíbulos e vagões de lazer, e em última instância, até mesmo uma força militar! sim, o trem é um microcosmo perfeito de nossa sociedade, e só não vê isso quem não quer, logo nas primeiras páginas da HQ.
Técnicas de controle de massas...
... de uma ponta à outra do espectro comportamental individual.
Essa é uma breve descrição de "O Perfuraneve", uma memorável HQ européia - da França, para ser mais exato - um excelente conto sobre um futuro distópico. E, por se tratar de uma distopia, a Aleph não poderia ficar sem lançar isso por aqui. A editora, já conhecida por seu catálogo recheado de clássicos da literatura de ficção científica compilou as três histórias - "O Perfuraneve", "O Explorador" e "A Travessia" - nesse belíssimo volumão, com um papel LWC de gramatura altíssima. De grandes dimensões (21,5x29cm) e pesando mais de 1kg, essa edição nacional é um livraço, o que me fez demorar a terminar a leitura, já que era impossível abrir no ônibus ou ler na cama, por exemplo. Mas muito bonito e caprichado, brincadeiras à parte.
As três HQs, compiladas em volume único aqui no Brasil
Em "O Perfuraneve", HQ lançada em 1984 (que coincidência, não? rs), acompanhamos Proloff, um habitante dos vagões dos fundos que tenta avançar para a frente do trem. Durante sua jornada vemos um pouco, ainda que de forma apressada, do funcionamento dessa sociedade do trem: como os alimentos são processados/cultivados, a organização religiosa, que substituiu Deus pela Santa Locomotiva, e as fontes de diversão da elite, hedonista e decadente. Lá ele descobre que há um problema com a propulsão da locomotiva. A máquina está perdendo sua velocidade gradualmente. Proloff também descobre o que a elite acha ser a causa do problema e os planos para resolver isso, ambas as conclusões monstruosas.
"Percorrendo a branca imensidão de um eterno e congelante inverno de solidão, corre, de uma ponta à outra da Terra, um trem cujo movimento nunca se encerra."
Nas duas histórias seguintes, "O Explorador" e "A Travessia", produzidas mais de uma década depois da original, devido à morte de Jacques Lob, quem escreve os roteiros é Benjamin LeGrand. Dessa vez a máquina onde se passam as duas histórias não é o Perfuraneve, e sim o Desbrava-gelo, uma locomotiva ainda maior, e que é regida por um conselho de líderes, tendo como integrantes o líder político, o líder religioso, o chefe da segurança, entre outras autoridades. As questões sobre autoritarismo, estratificação social e manipulação continuam, e são até mais bem desenvolvidas. Vemos inclusive uma força de controle que não havia na primeira história: a mídia. Existe uma emissora de tevê, que além de doutrinar, sorteia viagens de realidade virtual, o único escape fugaz das massas para a miséria em que estão enfiadas. A religião é cheia de dogmas, que engessam as pessoas nas posições exatas que o sistema deseja que elas permaneçam. Além disso existem os desbravadores, equipes de trabalhadores que saem do trem com pesados trajes de proteção, para realizarem reparos, exploração e quaisquer outros motivos que a liderança do trem alegue para utilizá-los. Puig Vallès, um desbravador que questionou demais a respeito de uma dessas missões é preso, e a partir daí vemos uma série de desdobramentos que colocarão o delicado equilíbrio social do Desbrava-gelo por um fio!
Escolha seu veneno: a mídia...
... a religião...
... ou o estado totalitário mesmo! Ainda bem que não vivemos nesse trem. Não, pera...
Em 2013 foi lançada uma adaptação da HQ, que só chegou aos cinemas brasileiros mais de um ano depois. Roteirizada e dirigida pelo coreano Joon Ho Bong (mesmo diretor de "O Hospedeiro", o filme mais lucrativo já produzido na Coréia do Sul), "O expresso do amanhã" é o primeiro filme ocidental do diretor. Estrelado por Chris "Capitão América" Evans, mas também com bons nomes como John Hurt (R.I.P.), Ed Harris e Tilda Swinton. Apesar das diferenças em relação à HQ o filme funciona, e foi um dos melhores que eu assisti em 2014. Mesmo com um final diferente, com direito à plot twist e cenas de ação à exaustão, um vício das produções ocidentais atuais, a essência da HQ se faz sentir e a cenografia e caracterização da produção fazem as duas horas do filme valerem muito a pena. Como eu sempre digo pra minha mulher: "Nunca vi um filme coreano realmente ruim" rsrsrs.
"O expresso do amanhã" a.k.a Snowpiercer (2013)
CompReto e dubRado
Pra quem gosta de distopias, tanto a HQ quanto o filme são um prato cheio. Quem aprecia HQs Européias, vai curtir o estilo de Jean-Marc Rochette, que inclusive tem uma evolução da primeira para as outras duas histórias, perceptível não só em seu traço, mas principalmente na fluidez narrativa, no ato de contar a história de um quadro para outro. Além das três HQs, essa edição nacional tem um posfácio do cartunista Jean-Pierre Dionnet, onde ele fala um pouco a respeito da HQ e da adaptação cinematográfica, com imagens de produção da adaptação.
Uma alegoria que mostra o vício da humanidade em repetir os próprios erros, ao criar um microcosmo idêntico ao que foi responsável pela destruição do mundo, "O perfuraneve" começa lento, mas engrena a leitura rapidamente, e à medida que a trama se desenrola, não dá mais pra parar de ler, como uma locomotiva sem freios, até suas páginas finais. Uma história sobre o egoísmo incorrigível do ser humano, e como pessoas inventam hierarquias e castas até em situações limite. E é por isso que eu prefiro os macacos.
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