sexta-feira, 8 de junho de 2018

DESOLATION JONES, de Warren Ellis + J. H. Williams III + Danijel Zezelj, ou "A melhor HQ jamais finalizada que você vai ler na sua vida!"








Por EDUARDO CRUZ



Alguém aqui já leu Sandman

Não??? Então vão lá, peguem as 75 edições, leiam e voltem a esse post. Vou ficar esperando aqui. 

Prontos? 

Então vamos lá:
Quem lembra da biblioteca do Sonhar? A biblioteca onde estão armazenados todos os livros que foram sonhados, mas nunca chegaram a ser escritos, que nunca vieram a existir no tal do "mundo real". O reino de Morpheus tinha neste espaço o receptáculo perfeito para tudo que poderia ter sido, mas não foi, artisticamente falando. Por N motivos, projetos podem afundar, dar errado ou nunca acontecer. Parcerias azedam e inviabilizam a realização ou conclusão do trabalho. Artistas morrem antes de concluir suas obras. Empresas vão à falência e publicações são abruptamente interrompidas. Algumas coisas nunca chegam a atingir seu pleno potencial e são finalizadas prematuramente. Um (péssimo) exemplo é o Grandes Astros Batman & Robin, de Frank Miller e Jim Lee. Que poderia nem ter sido concebido, para começo de conversa. Ainda assim, esse aborto da natureza respirou e se arrastou por nove edições até finalmente alguém na DC finalmente ter o bom senso de desligar os aparelhos dele. E olha que eu sou fã do Bátemã rs!!!. Agora, um exemplo de uma ótima HQ que morreu antes da conclusão - bem mais agradável do que falarmos de um gibi onde a Morcega derrota o Lanterna Verde pintando um quarto todo de amarelo - é Desolation Jones.

O Absolute Desolation Jones está na prateleira de baixo, ao lado do Omnibus de Grandes astros Batman & Robin :>P


Michael "Desolation" Jones é um agente aposentado do MI6, o Serviço secreto Britânico, que após cair em desgraça por embriaguez em serviço e má conduta, não tem outra escolha senão servir como cobaia em um projeto secreto, o Teste Desolação. Ele é, aparentemente, o único sobrevivente de um experimento que o obrigou, entre outras coisas, a ficar sem dormir e assistindo a cenas de morte e violência por um ano inteiro. O experimento deveria aprimorá-lo, mas dá terrivelmente errado, e Michael é "aposentado", sendo exilado pelo resto de sua vida em um local designado para outros como ele. E qual o melhor lugar para esconder ex operativos de agências de inteligência que foram cobaias de experimentos de aprimoramento mal sucedidos? Qual cidade do mundo tem a maior concentração de esquisitões por metro quadrado??? Isso mesmo, Los Angeles, Califórnia! Existe toda uma comunidade de ex espiões de diversas agências com aprimoramentos bizarros vivendo na Cidade dos Anjos, todos legalmente invisíveis, mas sem permissão de abandonar a cidade. Michael presta serviços de investigação particular entre os de sua comunidade. Esse primeiro (e único) arco aborda um dos serviços de Jones: Ele é contratado por um coronel para investigar quem teria roubado de sua coleção particular um item de valor inestimável, o Santo Graal da sacanagem cinematográfica: Os filmes pornográficos caseiros de... Adolf Hitler!

"Isso é L. A., querido. É com os de aparência normal que a você precisa ficar esperto."


Admito que também não acho a trama lá muito original, já que ela segue a manjada cartilha noir do investigador durão, com mulheres fatais, o McGuffin cobiçado por todos, reviravoltas inesperadas e etc, mas o que faz de Desolation Jones genial é a criatividade de Ellis, que sempre tende ao bizarro, para enriquecer essa trama, acrescido à doses brutais de realismo, violência explícita e temas contemporâneos: Jones investiga o submundo pornográfico de Los Angeles em busca do tal filme pornô roubado, e por conta disso há uma cena interessantíssima com uma atriz pornô explicando para Jones um lado de sua profissão que poucos conhecem, os bastidores da indústria, e que poderia ter sido extraído de uma entrevista, de tão cru que é o diálogo. 



Outro ponto que não poderia deixar de mencionar fica por conta dos ex operativos exilados em Los Angeles: Eles não possuem poderes úteis e impressionantemente glamourosos como vemos em X-Men, por exemplo. São todos vítimas de experimentos que deram terrivelmente errado, e que não passam de uma grande inconveniência para seus portadores. Alguns variam do extremamente bizarro ao pateticamente inútil, como por exemplo Jeronimus Corneliszoon, empresário de Jones, que deveria ser o soldado perfeito, com necessidade de se alimentar apenas quatro vezes ao ano. Seu estômago, modificado pela CIA, o obriga a consumir vastas quantidades de proteína, e por isso ele é o único operativo autorizado a sair de L.A. para comer vacas. Inteiras e em pleno campo aberto, ajudando assim a perpetuar as bizarras lendas de mutilação de gado América afora. Também há Emily Crowe, que como resultado de um experimento da CIA para criar a armadilha sexual definitiva, emite o tempo inteiro feromônios que provocam repulsa e medo irracional em todos à sua volta, com exceção de Jones, que não é afetado, provavelmente por causa do Teste Desolação. O cárcere de Emily é bem menor que o dos outros agentes, já que ela mal sai de sua casa. Uma personagem que desperta consternação no leitor.




O próprio Jones é um amontoado de problemas: O experimento fez com que ele tivesse uma compleição frágil, cheio de cicatrizes, pele cinzenta e cabelos brancos. Jones evita luz solar e sofre de dores crônicas e impotência sexual. Ainda assim, é bastante perigoso, com reflexos acima do normal e seu treinamento do MI6. Psicologicamente, ele é incapaz de sentir medo ou remorso, e se necessário, recorre ao homicídio sem maiores problemas, às vezes de mãos nuas. Além disso, Jones sofre de alucinações, vendo anjos seminus ou ensanguentados pairando sobre a cidade. "Soldadinhos quebrados", como Corneliszoon se refere à sua comunidade em um determinado momento. Esses agentes descartados são uma pequena faceta do abuso de poder e os absurdos a que a corrida armamentista pode chegar. Por conta de sua condição, Jones acha que mais nada pode feri-lo, e descobre da pior maneira que ainda pode se machucar um pouco mais.




"Ganhar uma luta não se trata de ser o mais forte ou o boxeador mais esperto, se trata de ser o mais disposto a foder permanentemente com o outro cara." Amém, brother...



Desolation Jones durou oito edições, sendo que as primeiras seis compõem o arco Made In England, com arte de J. H. Williams III e Jose Villarrubia e o arco seguinte, To Be In England, do qual só saíram as duas primeiras edições, com arte de Danijel Zezelj. O motivo disso foi a perda dos roteiros originais: O computador de Ellis deu pau e ele perdeu vários roteiros sem backup, incluindo Desolation Jones e alguns outros trabalhos. Depois disso, o desânimo foi tão grande que ele nem tentou reescrever. A série foi descontinuada na oitava edição. O encadernado lançado pela DC não inclui as edições #7 e #8, as duas primeiras do arco incompleto, apenas as seis edições do arco Made In England.




A arte de J. H. Williams III (Promethea, Batwoman, Sandman: Prelúdio) é um show à parte. Seus layouts de páginas são alucinantes e sobrenaturalmente criativos, tornando a tarefa de virar cada página um esforço. O colorista é Jose Villarrubia, colaborador de longa data de Williams, e em perfeita sintonia com o traço do desenhista. Ellis foi presenteado por ter esses dois frente à arte de Desolation Jones. O título chegou a ser indicado a seis prêmios Eisner (Melhor nova série, melhor arco de história, melhor escritor, melhor desenhista, melhor colorista e melhor letreirização). Apenas Villarrubia ganhou o Eisner de melhor colorista, mas Desolation Jones merecia bem mais...

Lembra daquela página fodástica de Promethea? Coisa do Williams...


Uma mescla entre romances detetivescos do Mike Hammer de Mickey Spillane e do Sam Spade de Dashiell Hammett, somado ao clima weirdo da Los Angeles de Vício Inerente de Thomas Pynchon e ainda uma pegada de jornalismo gonzo, que também é a cara de Los Angeles. Adicione a isso pornografia (L.A. é a capital do pornô mundial!) e drogas (segundo Marilyn Manson, L.A. é a capital mundial das drogas) e, lógico, toda a inventividade, insanidade e violência que um Warren Ellis extremamente inspirado pode entregar, e dá pra ter uma boa idéia do que esperar de Desolation Jones. Não podemos esquecer de mencionar a parceria com Williams, os dois afinadíssimos para fazer essa Los Angeles tão bizarra ser tão crível. Ellis é um cara que escreve a história das HQs agora, nesse exato momento, enquanto eu escrevo esse texto e enquanto vocês o lêem. Então, não esperem pelo cinquentenário da morte dele para atestar sua genialidade. Vá atrás de uma boa história do Ellis AGORA! Acredite, até os gibis incompletos desse cara valem muito a leitura...

"Essa cidade encontra uma nova maneira de partir meu coração todo fuckin' dia..."

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