terça-feira, 3 de julho de 2018

O CORVO, de James O'Barr: Neogótico em alta fervura!






Por EDUARDO CRUZ


"Se as pessoas que amamos são roubadas de nós, o jeito de mantê-las vivas é continuar amando-as. Os prédios queimam, as pessoas morrem, mas o amor verdadeiro é para sempre."



E eis que assim, meio que de repente, finalmente sai no Brasil um clássico das HQs independentes: O Corvo, de James O'Barr! Essa HQ, originalmente publicada em 1989 lá fora, e após algumas tentativas malfadadas de outras editoras para publicação aqui no Brasil, finalmente ganha uma edição definitiva peloo selo Darkside Graphic Novel, da Darkside Books, com introdução do próprio autor e 30 páginas extras que, como O'Barr explica na introdução, simplesmente não possuía a perícia técnica para fazê-las como ele queria na época. O Corvo é mais um daqueles gibis essenciais, uma verdadeira injeção de ânimo em termos de quadrinhos autorais, em uma época em que os autorais ainda eram relegados ao underground, e por que não dizer, uma das obras que ajudou a elevar o nível - e muito! - nesse segmento das HQs autorais.


Calma! Não me enganei e tirei foto da HQ errada não!
Os anos 80 foram assim mesmo, amiguinhos...

Mas do que trata o enredo desse clássico das HQs independentes? O Corvo narra a vingança além-túmulo empreendida por Eric Draven, um jovem assassinado por uma gangue de criminosos viciados, tão perversos que beiram o caricato, não fosse a crueldade desmedida que cada um deles é capaz de executar. Draven é morto, mas antes presencia a gangue violentando sua noiva Shelly, para, por fim também acabarem com a vida da moça. Tempos depois, Draven está de volta do mundo dos mortos, guiado por um misterioso corvo, e em busca de vingança. Draven assume uma pintura de guerra baseado nas máscaras teatrais gregas da comédia e tragédia e começa seu acerto de contas, no melhor estilo John Woo, com muitas balas, facadas e golpes de katana, matando membro por membro da gangue de marginais, num crescendo de violência que culmina no cabeça da gangue, T-Bird. Tudo isso embebido em um clima gótico, com direito a citações a torto e à direito de letras de bandas de pós-punk e autores como Baudelaire e Rimbaud. Então, antes de começar a leitura, sugiro que vocês coloquem sua playlist de Darkwave para rolar, a melhor ambientação possível para esse gibi.








 "Eric grita e grita e bate a cabeça contra a parede
até que sirenes fantasmas cruzam sua visão.
Tudo que ele quer é dor.
Dor e ódio
Sim, o ódio.
Mas nunca o medo. O medo é para o inimigo.
O medo e os tiros."




"Tive a esperança de que, se botasse toda a minha fúria assassina no nanquim e no papel, de algum jeito, por mágica, toda a dor, toda mágoa e toda tendência autodestrutiva que se seguiu iam virar fumaça."

James O'Barr
A premissa básica parece um tanto simplória e meio batida, mas como toda obra de arte que vale a pena ser analisada e apreciada, O Corvo nasceu de um bocado de dor e sofrimento. Na introdução escrita por O'Barr nesta edição da Darkside Books, ele explica que a idéia da HQ surgiu de uma tragédia pessoal que o assombrou por muito tempo: Quando jovem, ele pediu carona a uma namorada, que acabou morrendo atropelada por um motorista bêbado antes de encontrá-lo. Atormentado por dor, culpa, mágoa, e pensamentos autodestrutivos, produzir esse gibi foi a maneira de O'Barr se purgar de todo o sofrimento e desespero da perda. Além, é claro, da culpa esmagadora... Para mim, essa história pessoal por trás da HQ justifica toda a ultraviolência contida na história. A maneira que Eric Draven se porta, tanto na HQ como no filme, com todo aquele deboche e jocosidade, como se para disfarçar toda a imensurável dor de ser ceifado antes da hora e de forma injusta e seguir em frente, reflete a dor de O'Barr ali, estampada em cada página. Nas palavras de Nietzsche: "A arte existe para que a verdade não nos destrua", e O Corvo é um bom exemplo da validade dessa citação.



Em 1994, O Corvo ganhou uma adaptação cinematográfica, que em minha opinião, é pouco lembrada e bastante subestimada. Dirigido pelo cineasta australiano Alex Proyas (do também subestimado Cidade das Sombras, que na época infelizmente foi ofuscado pelo de tema similar, porém muito mais pirotécnico Matrix), esse filme foi minha semi obsessão na época de seu lançamento, tanto pela história quanto pelo trágico acidente ocorrido durante a produção: O protagonista, interpretado por Brandon Lee, filho da lenda viva Bruce Lee, morreu durante as filmagens do longa metragem, alvejado por uma arma de festim mal regulada. Sim, também acho que foi tão estranho quanto o que aconteceu com o próprio Bruce Lee, o que me fez pensar a vida inteira se a maldição dos Lee não seria real. 

Brandon Lee (01/02/1965 - 31/03/1993)
Ao rever o filme para escrever essa resenha, já com a leitura da HQ fresca na memória, dá pra perceber o quanto O Corvo foi um filme importante nessa trajetória das adaptações de histórias em quadrinhos para cinema e merece ser mencionado com mais frequência. Bastante fiel ao plot da HQ, não há demonstrações ostensivas de que se tratava de uma adaptação de quadrinhos. Muitos diretores entendiam erroneamente, em uma era pré Marvel Studios - salvo pouquíssimas exceções, como esta - que um filme oriundo de uma HQ não precisava de seriedade nem carga dramática. Aqui não há situações que desprezam a inteligência da audiência. Os efeitos especiais são datados, afinal já fazem 24 aninhos, né? E, mesmo assim, isso não compromete o filme de forma alguma.  Apenas um filme honesto, contando uma história da melhor maneira possível. E foi o que bastou. Uma pérola cult, que inclusive consegue fluir melhor que a própria HQ em vários momentos. Tudo com as bênçãos de O'Barr, que também assina o roteiro da adaptação.



O filme conserva todo o clima dark de tristeza e violência oriundos da HQ, além de ser visualmente belíssimo, com recursos que a mídia cinema pode criar de uma forma única: Enquadramentos fora do convencional; sets riquíssimos em detalhes, compondo uma cidade suja, escura e desolada que faria Gotham City parecer a Barra da Tijuca; uma estética neogótica que permeia o filme do começo ao fim e que em vários momentos cria cenas de beleza soturna na tela. Ah, e uma trilha sonora fabulosa, composta por nomes como The Cure, Nine Inch Nails, Rage Against The Machine e The Jesus And Mary Chain. Numa época em que a gente ainda frequentava lojas de discos e consumia música por meio de suporte material, a trilha sonora do O Corvo era um dos CDs mais disputados lá por 1995, 1996...

Uma das trilhas sonoras mais cobiçadas dos anos 90...

Voltando à HQ, uma curiosidade é que a arte é totalmente à mão, apenas lápis, nanquim e retículas para fazer os tons de cinza. Algo cada vez mais raro nos dias de hoje, em que muitos artistas já possuem seus portfólios totalmente em suporte digital. O Corvo é uma HQ 100% artesanal, com um pé no fanzine, sem computadores em nenhuma etapa de sua feitura. O traço de O'Barr é preciso e detalhista, algo entre Vince Locke e Michael Zulli, para fins de comparação. Retratando a cidade  suja e violenta, como não poderia deixar de ser. Mas esse traço sujo e rascante tem como contraponto algumas sequências oníricas, um simbolismo típico de sonhos, onde Eric observa um cavalo preso em arame farpado, sem nada poder fazer para salvá-lo, uma poderosa metáfora para a impotência frente à tragédia, tanto de Eric quanto do próprio James. Nessas sequências o traço é suavizado, quase como uma aguada em tons de cinza, porém a suavização só ocorre em nível visual mesmo. A angústia, melancolia e tristeza permanecem presentes ao longo de cada página, e nem sempre sutil. Quem já ouviu Joy Division conhece a sensação...


Uma história sobre a aceitação da inevitabilidade da morte e sobre o perdoar a si próprio, O Corvo é um daqueles trabalhos viscerais, feito não só com as mãos, mas com muito coração e alma. Pode conferir, está tudo no papel...




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