"A cada noventa anos, aproximadamente, doze deuses reencarnam no corpo de jovens adultos. Eles são carismáticos, perspicazes e atraem grandes multidões. São capazes de levar qualquer um ao êxtase. Há rumores de que podem realizar milagres. Eles salvam vidas, seja metafórica ou concretamente. Eles são amados. Eles são odiados. Eles são incríveis. E em menos de dois anos estarão todos mortos. Isso já aconteceu uma vez. E vai acontecer de novo..."
Então vamos lá... UM, DOIS, TRÊS, QUATRO!
Um estalo de dedos e estou de volta, digitando e pesquisando em livros grandes e empoeirados sobre divindades obscuras, mesmo com esse gesso de 5kg no braço. Um chamado divino (só não sei qual deus ao certo rs) me fez sair do repouso e escrever sobre essa série fantástica, que de 2014 pra cá já ganhou um British Comics Award e foi indicada para três Eisners! O selo Geektopia, da editora Novo Século, acaba de lançar o primeiro encadernado por aqui, com o arco inicial da série, contendo as 5 primeiras edições de The WicDiv, que lá fora é publicada pela Image, que seria uma espécie de Vertigo renascida e mais forte, feroz e inteligente. A encarnação anterior da Vertigo continua na DC Comics e respirando com a ajuda de aparelhos, sem demonstrar melhoria em seu quadro até o fechamento desse post.
Da esquerda para a direita: A deusa Amaterasu, a protagonista Laura e Lúcifer, o demônio judaico cristão, a estrela da manhã, o adversário, o caluniador, a serpente, o pai da mentira... |
Andy Warhol profetizou que no futuro, todos teríamos nossos quinze minutos de fama, uma notoriedade fugaz, notoriedade essa que vemos muitas pessoas desfrutando sem realmente aparentar talento para nada além do próprio talento de estar sempre presente nos meios de comunicação em massa, nas redes sociais e nos trend topics do Twitter. Era de se esperar que após duas gerações vivendo sob essa condição estabelecida nos últimos anos do século XX, isso evoluiria para um estado de fetichização tão grande que hoje em dia a molecada quer ser famosa. Pelo quê exatamente, não importa. Ponto. Porque essa colocação? achei importante contextualizar esse estado de coisas antes de começar a falar da HQ. Sigamos.
De autoria da mesma equipe criativa de "Phonogram", o roteirista Kieron Gillen e o artista Jamie McKelvie, em The WicDiv seguimos os passos de Laura, uma jovem do sul de Londres. Laura é fã de um desses deuses reencarnados, Amaterasu. Em uma apresentação de Amaterasu, Laura entra em êxtase, e ao despertar, conhece Lúcifer (esse mesmo! mas em um corpo feminino) e é convidada a ir aos bastidores do show da deusa. Ali, acontecimentos dramáticos ligam sua vida ao Panteão, o grupo de jovens que subitamente se tornaram avatares vivos de deuses e vivem uma vida badalada de fama e poder (no sentido literal e metafísico mesmo!), alçando status de ídolos pop, com multidões de fãs, amados, idolatrados e também odiados, tudo isso com data para acabar: em dois anos todos eles estarão mortos, para em noventa anos reiniciarem este ciclo, no que é conhecido como "A Recorrência". Através do olhos de Laura, passamos a conhecer algumas dessas divindades do panteão à medida que a história avança para sua conclusão (sim, o autor vai cobrir esse período de dois anos da Recorrência atual e a série está caminhando para a edição 30; Gillen já afirmou que a série vai fechar até no máximo a edição 60, ou sejE, lá fora The WicDiv já está praticamente na metade). Porém, como ainda só li este primeiro encadernado, só vou falar inicialmente das divindades do panteão que dão as caras nesses arco inicial. Não são deuses óbvios como Thor, Zeus ou Shiva. Gillen usa deuses mais obscuros em sua narrativa, o que provoca no leitor um pequeno comichão para fazer uma pesquisa mais profunda. Pra mim, que sempre curti mitologia, foi uma diversão extra além da HQ. São eles(as):
- Ananke - Não exatamente uma deusa, mas uma entidade poderosa e antiga, responsável pela manutenção das recorrências do Panteão através dos séculos. Demonstra afeto e uma ligação íntima com todos eles.
- Baal - Baseado no deus semítico das tempestades, Baal-Hadad. Baal é bissexual e já teve um caso com Inanna, até ele o trair com Lúcifer,. Seu estilo é baeado em astros do R&B, como P. Diddy e Kanye West. Seu símblo no panteão é um bode.
- Baphomet - Bafomet já conhecia a deusa Morrígan antes da revelação de sua divindade, tendo com ela uma relação conturbada de amor. A inspiração para o personagem vem de Morrisey, Andrew Eldritch (do Sisters of Mercy) e Nick Cave. Seu símbolo é o bode com duas espadas.
- Inanna - Apesar de Inanna ser a deusa suméria do amor, do erotismo, da paixão, é representada, na série por um rapaz bissexual que tem a estrela de oito pontas como símbolo. Baseado no artista andrógino Prince, Inanna é extravagante em suas roupas, mas tem uma das melhores personalidades do Panteão.
- Lucifer - Antes de ser transformada seu nome era Eleanor Rigby (homenagem a música homônima dos Beatles). Luci é a representação do diabo da mitologia judaico-cristã, seu símbolo é o pentagrama e é inspirada em Madonna e David Bowie (mais precisamente em sua persona Thin White Duke). Também remete à fase andrógina de Madonna.
- Minerva - A membro mais nova do Panteão, tem 12 anos e representa a deusa romana da inteligência e astúcia. Tem uma coruja robô que sempre a segue e esse animal é seu símbolo (só consigo lembrar da coruja de "Fúria de Titãs" heheh) . Sua jaqueta nos remete aos Beatles, My Chemical Romance, e no Queen. Sim, me recuso a falar do Coldplay rs.
- Morrígan - Uma divindade tríplice, aparece em 3 formas: Macha, Badb e Annie. Tem como símbolo uma caveira com máscara de corvo, ela pode curar pessoas e controlar corvos, é um espírito celta que representa a batalha, luta e soberania. É apaixonada por Bafomet e é insirada em Patti Smith, Siouxsie Sioux, Sinéad O'Connor e Kate Bush.
- Sakhmet - A deusa leoa egípcia era uma furiosa guerreira do exército do deus sol Rá. Baseada em Rihanna, ela se comporta como um gato a maior parte do tempo. Seu símbolo é uma leoa.
- Wōden - Representando o rei da mitologia Nórdica, Odin, Woden sempre está acompanhado de seu séquito de Valquírias. Ele consegue dar poderes a elas e seu estilo é baseado na dupla do Daft Punk.
- Tara - Não se sabe de qual mitologia Tara vem, mas a budista é a principal opção. Tara é odiada pela maior parte dos fãs do Panteão e os próprios membros não confiam muito nela. Ela é representada elas máscara do teatro e foi baseada em Nicki Minaj e Lady Gaga.
Se estiver a fim de uma imersão mais profunda, é só conferir a playlist do Spotify, onde Gillen disponibiliza as músicas que o inspiram na criação do título.
Não, não tem só diálogos. A porrada come solta!! |
Além da inspiração óbvia em cima da música pop atual e seus ídolos, Gillen se inspirou no câncer terminal de seu pai para criar The WicDiv, segundo ele próprio "uma história sobre vida e morte". Mas além disso fica bem claro o comentário a respeito da própria sociedade e este sistema que a indústria do entretenimento construiu para si, que carece sempre de uma nova estrela, um grande messias pop que vai salvar as massas com sua arte. Em nossa sociedade, que tem como base o consumo e o materialismo, é óbvio que a maioria das pessoas, principalmente a juventude, está desligada de qualquer espiritualidade, mas um instinto atávico move as pessoas a procurar um substituto para saciar esta necessidade, tão inerente quanto o próprio impulso gregário do ser humano: construir ídolos para si. Dependendo de seu ponto de vista e sistema de crença pessoal, The WicDiv pode mostrar que estes ídolos pop são o novo bezerro de ouro, em alusão ao episódio bíblico, ou são o nível seguinte desta necessidade do homem de construir para si ídolos que validem seu estilo de vida, a fim de justificar sua própria existência. Neste último caso, os deuses acompanharam os passos da humanidade, sempre em evolução (esperamos que sim!), ao invés de morrerem soterrados nas areias do tempo ou se tornarem mobília empoeirada num canto do inconsciente coletivo, e se transformaram, com o intuito de continuar a serem idolatrados e devotados.
Além disso, identifiquei um elemento em comum com outra HQ que dispensa quaisquer apresentações: "Sandman", de Neil Gaiman. Essa jogada narrativa, de se pegar um elemento completamente deslocado de nossa realidade, algo místico, divino ou mitológico e inseri-lo na vida quotidiana, como Gillen faz com seus deuses da antiguidade andando e interagindo com as pessoas nos dias atuais, nos moldes atuais, já foi explorado em diversos momentos na HQ Sandman. É algo que quem já teve contato com a HQ de Gaiman identifica logo nas primeiras páginas de The WicDiv, porém, não é o mesmo tom, veja bem. Roteiristas diferentes, épocas diferentes, mas repito: isso foi algo bem bacana durante a leitura. Tive a mesma sensação de quando li Sandman a primeira vez, de que tinha em mãos uma história rica, vibrante e cheia de camadas. E isso, amiguinhos, para um leitor de HQ velhaco, cansado e quase sem fé nas HQs atuais como eu, é um sopro de ar nos pulmões. Mais do que restaurar a fé em deuses esquecidos, esse título restaurou minha fé na safra atual de HQs autorais.
Quanto à edição nacional do encadernado, não tem do que se reclamar: papel couché envernizado, uma bela capa dura, formato um pouco maior que o americano. Achei uns dois erros de digitação aqui e ali, por falta de uma revisão mais atenta, mas isso não incomoda nem compromete de jeito nenhum. A Geektopia começou com muito mais acertos do que erros e a iniciativa de lançar este título é louvável! Agora é rezar para um deus qualquer (qualquer um mesmo, pode escolher! vale até o diabo!) para a periodicidade de The WicDiv seja amigável com seus leitores aqui, e que não fiquemos até dois anos aguardando o lançamento de um volume (cof cof DEVIR cof cof coff), como acontece com outras duas ou três séries em publicação atualmente no Brasil.
P.S.: Ah, e pra quem se interessar por uma leitura complementar nesses aspectos que abordei aqui de leve, esbarrei nesse texto enquanto pesquisava um pouco sobre a cara atual de um astro pop. Bem interessante, recomendo a leitura!
P.S. 2: Meus mais sinceros agradecimentos ao amiguinho Fabrício Rocha por ter me indicado essa HQ, e acima de tudo, por ter insistido que eu lesse rsrsrsrs
Excelente artigo que me deixou muito curioso sobre essa HQ. Esse tipo de história, que envolve deuses andando no meio dos mortais, é sempre interessante. Um abraço.
ResponderExcluirObrigado! Dê uma lida, você vai gostar!
Excluir