Salve, seus alucinados!!
Demos uma breve parada nas
resenhas pra dar aquela enchida de lingüiça que deixa a turminha feliz, porque
Encheção de lingüiça na Zona Negativa é uma pausa pra ler um conto, e sempre de
alto nível!
O alvo da vez é nosso chégas, o
escritor César Bravo. O autor do excelente Ultra Carnem – resenha completa aqui
– já
era conhecido há bastante tempo na rede por ter lançado vários contos em algumas coletâneas. “Síndrome” é um de seus contos mais recentes, e que temos orgulho de publicar aqui, saído do forno! Deliciosamente
insano e violento, - e os freaks leitores de HQs vão sentir uma pegada do "Crossed" de Garth Ennis nele - o conto mostra a facilidade de Bravo para criar cenários
extremamente perturbadores e situações sem saída ou qualquer esperança de uma
resolução feliz. Otimistas, estejam
avisados!
Um livro infernal. |
Então sem mais delongas, fiquem
com essa pérola sangrenta do cancioneiro nacional, e até o próximo post!
Síndrome
César Bravo, 2017
Não sei ao certo como cheguei até aqui. Meu estômago está
embrulhado, minha boca está seca e pastosa. Meus olhos não enxergam com clareza.
Cada pedaço da vida se tornou tortuoso, permeado por perseguições, revolta e
fúria. Não confio em ninguém, minhas costas doem, às vezes perco o controle da
bexiga. Quando penso no futuro, vejo um poço sem fundo, um caminho sem luz, uma
miséria sem volta.
A cidade cheirando à fuligem e lixo não parece capaz de me
ajudar. Suas esquinas sequestram desesperados desabrigados; cães, gatos e ratos
são o novo alimento das ruas. Os arranha-céus sorriem de minha insignificância,
albergando os homens ricos que têm a triste (?) sorte de se manterem ilesos.
Como muitos, desde o início do que pareceu um quadro
depressivo, estive em todos os consultórios médicos da cidade.
Cardiovasculares, Neurologistas, Psiquiatras, Psicólogos. Frequentei todas as
igrejas, templos e terreiros, usei os medicamentos que pude comprar, gastei meu
estômago e meus joelhos no chão; exatamente como me orientaram a fazer. Meu
desespero aumentou há dois meses, quando percebi que não era o único.
Em meu trabalho, meu melhor amigo perdeu a capacidade de
dormir. Esse foi o primeiro passo. Em seguida ele se tornou violento, por fim,
em um surto da Síndrome, atacou nosso chefe e o enviou ao ambulatório, com a
mandíbula quebrada em dois lugares. Não sendo um homem violento (não naquela
época), eu preferi o que era certo: procurei ajuda.
Benzodiazepínicos, Clonazepam, Litium, Valium,
Lexapro.
Os medicamentos me levaram a uma espécie de torpor, onde o
ontem e o hoje se misturavam, condenando o amanhã. Anestesiado como estava,
perdi a confiança de meus amigos, perdi meu emprego — ainda sem imaginar que
todos os meus colegas teriam um mesmo diagnóstico em poucos dias.
Ninguém sabe ao certo como a Síndrome começou a afetar a
cidade toda — pelas notícias da TV, o mundo todo.
Pessoas se arrastam, as contas do estado estão no vermelho.
A violência dá o tom da mudança.
Semana passada, meu vizinho destruiu um carro de
propagandas que o acordou antes do relógio. O “homem das pamonhas” tentou
reagir, apanhando um bastão escondido sob um dos bancos. Meu vizinho tinha uma
arma, não é difícil supor o resto da história.
Longe das ruas, as casas de repouso e presídios estão
abarrotados de corpos confusos e instáveis. Quem tem dinheiro ocupa a primeira,
o segundo é o hotel dos pobres. Estima-se que 32% da cidade esteja encarcerado,
sob o domínio da Síndrome.
Surgiram várias hipóteses sobre o que parece ser um surto
global de estresse e violência. Agrotóxicos, um novo vírus, vibriões; eu
acredito na hipótese mais aceitável: a dificuldade em se adequar a uma
sociedade fatigada pela pressão. Alguém sugeriu, em uma revista de pouca
expressão, que pode ser culpa do alinhamento de alguns planetas, da regência de
Saturno, e que uma dessas besteiras de algum modo afetou a maneira que as
pessoas enxergam o mundo. Eu penso que só agora enxergamos a verdade — e ela
existe em nós desde que o primeiro macaco falou.
As empresas e instituições seguem aos tropeços, com um
quadro de funcionários cada vez menor; há fome e desemprego em todos os cantos.
Exércitos igualmente adoecidos ocupam as ruas há meses, o consumo de drogas
ilícitas superou o tabaco e o álcool.
Estamos em 2028. O sol brilha como um inferno suspenso nos
ares, transpiramos o tempo todo, nossas casas não têm energia, a água tratada
foi dividida por cotas.
Estou sentado em um praça aqui da cidade, respirando
profundamente. A igreja destruída ainda rui à minha frente. Observo seis ou
sete pessoas (é difícil contar à distância, meus olhos não enxergam muito bem)
entrando em uma discussão. O motivo, não sei claramente, mas duvido que exista
algum. A verdade é que todos querem um rosto para bater, uma carne para rasgar.
Querem, de algum modo, transferirem parte da dor e agonia que sentem para outra
pessoa.
Seguido do estado de apatia inicial, surge a histeria. É o
que está acontecendo com aqueles caras. O motivo pode ser um olhar atravessado,
uma sensação de perseguição, o rosto feliz de quem ainda não foi afetado pela
Síndrome.
Todos estão furiosos.
Daqueles seis — seis não, sete (agora consigo enxergar) —,
dois estão no chão. Suas cabeças são pisoteadas pelos outros cinco. Um dos
agressores é uma menina, não deve ter mais de quinze anos. Mas ela tem saliva
pelo queixo e uma corrente ensanguentada nas mãos. Ela bate contra o homem
caído ao chão e rasga sua pele, o outro se levanta e foge. Um dos outros
agressores, um homem com a farda da polícia, se afasta e sorri, ciente que um
corpo em sete é um bom número nos últimos tempos. Mas ele não resiste, e logo
se junta aos outros para golpear o homem que não conseguiu se levantar e
correr. O infeliz ao chão não tem mais um rosto. Seu terno está rasgado e sujo
de sangue, sua virilha, molhada de urina. Tem algo vazando pela parte de trás
de sua cabeça.
Sinto um impulso repugnante de sorrir, e eu bem sei o que
significa.
Quando você tem a Síndrome, quando sua vida perdeu o cheiro
e a graça, tudo o que resta é a dor dos outros. Porque dói menos quando alguém
sobre mais. Procuro em meus bolsos alguma medicação que nunca serviu para merda
nenhuma. Antes, encontro minha pistola, presente do meu avô, que nunca a usou
para nada melhor que encher uma gaveta. Eu resisto, mas então sinto uma dor
aguda no canto direito da cabeça. Golpeio o ponto algumas vezes, sentindo que a
dor só aumenta. Um silvo agudo toca e supera os gritos e gemidos da praça. Mas
quando envolvo a arma com minhas mãos trêmulas, meu cérebro quase sorri, tudo
vai embora, o mundo se cala.
Penso no policial, penso na garota com a corrente
ensanguentada nas mãos, penso no homem tatuado que está ao lado, arqueado,
recuperando o fôlego com as mãos apoiadas nos joelhos. Os outros não são
interessantes, eles parecem satisfeitos com o espancamento e começam a se
afastar. Mas os olhos dos três restantes ainda têm traços de sangue,
hipervascularizados, isso sempre acontece quando a Síndrome te pega de jeito.
Escondendo minha arma na cintura, assovio para eles. Meu cérebro sorri, minha
apatia me deixa em paz por alguns segundos. Sei do que preciso agora. Uma
canção antiga começa a tocar dentro de mim. Pode ser One in A Million, do Guns
and Roses. Penso na minha esposa. Minha pequena também tem a Síndrome, ela está
trancada no porão da minha casa há duas semanas, fui obrigado a isso quando ela
tentou me esfaquear.
“Depressão”, eles disseram.
“Estresse”, eles disseram.
“Ansiedade”, eles disseram.
Mas eu sei o que a Síndrome significa. Apatia, ódio,
involução, extinção. Imagino que a humanidade tenha seguido a direção errada,
que nossas mentes estejam poupando a terra mãe de nossa influência cancerígena.
E nós sabemos o que deve ser corrigido, chamem de empatia se quiserem. Mas a
dor é mais forte; o ímpeto, a vontade de prevalecer e ser mais forte.
Eles estão vindo, e é como se a dor e a ansiedade fossem
substituídas por serotonina. De repente minha arma torna-se um Deus. E eu, seu
anjo vingador. Hora de executar uma decisão, penso. E me preparo para matar ou
ser morto, voltando a essência selvagem da qual fomos feitos. A Síndrome vence
outra vez. Sem alarde, sem resistência, sem diagnósticos precisos ou curas
possíveis. Seus únicos analgésicos são o ódio e o suicídio, e consigo ser grato
por não ter vocação à morte.
As armas disparam, a corrente voa pelos ares, alguém perde
meia dúzia de dentes.
No fim, não importa o resultado final.
Estamos sorrindo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário