Por
RICARDO CAVALCANTI
Há
muitos anos venho ouvindo falar do livro Um Estranho Numa Terra
Estranha, de Robert A. Heinlein, que havia ajudado a pavimentar o
caminho para o movimento da contracultura que permeou boa parte dos
anos 1960/70 e se transformou na marca daquela época. No entanto, a
possibilidade de um relançamento por aqui era bastante remota. A
última edição havia sido a de 1992 pela editora Record, sendo
possível encontrar somente em sebos e em estado de conservação nem
sempre muito animador. Felizmente estamos vivendo uma época em que
passamos a ter acesso a obras clássicas e icônicas novamente em nossas mãos.
Ponto para a Aleph, que vem se mostrando comprometida em trazer obras
clássicas da ficção científica e vencedoras de importantes
prêmios do gênero. Um Estranho numa Terra Estranha foi vencedora do
Prêmio Hugo em 1962 na categoria principal. Robert A. Heinlein
compõe a seleta galeria de vencedores da premiação que contêm
nomes como: Isaac Asimov, Frank Herbert; Arthur C. Clark, Willian Gibson, China Miéville e Cixin Liu, autores que já chegamos a resenhar uma obra ou outra aqui no
Zona Negativa.
Robert Heinlein |
Mas
o que torna essa obra tão importante? Para responder a isso, precisamos
contextualizar um pouco. No ano de lançamento do livro o mundo
estava em transformação. A Guerra do Vietnã acontecendo, o Muro de Berlim sendo construído, o fracasso na tentativa da CIA de invasão da Baía dos Porcos, a luta por igualdade racial nos Estados Unidos, Yuri Gagarin indo ao espaço (literalmente), guerra fria e tensão mundial
a todo vapor. Momentos de crise costumam gerar transformações na
percepção da população de como ela vê o mundo ao seu redor e como ela está
inserida nesta realidade. Nesses momentos é que a arte se mostra
mais importante, tendo essencial papel na transformação do status
quo, seja pelo cinema, música, literatura, ou qualquer outra
manifestação artística. A arte pode (e deve) ser transformadora. Bom, vamos ao livro!
Partindo
do título, que é uma referência ao Velho Testamento da Bíblia, em
Êxodo, capítulo 2 versículo 22, Heinlein já começa mostrando que
pretende pisar em terreno perigoso. Mesmo assim, o faz de maneira
bastante sutil. Conta a história de Michael Valentine Smith, que
nasce em uma nave que estava em uma expedição à Marte e que acaba
perdendo contato com a Terra. Sendo o único sobrevivente, acaba
sendo criado pelos habitantes do Planeta Vermelho, aprendendo os
costumes e a forma de enxergar a vida, que é bastante peculiar e
muito diferente da nossa. Uma outra expedição é enviada novamente
à Marte, vinte e cinco anos depois, quando se descobre a existência
de um sobrevivente, que seria herdeiro de uma grande fortuna. A
partir daí acompanhamos sua história e sua adaptação, passando
pelo seu entendimento sobre a sociedade encontrada por aqui. Esta
interação muda não só Smith, mas também a própria Terra. A
trama se passa num futuro pós Terceira Guerra Mundial e que as
viagens especiais são mais corriqueiras e simples.
“O
Homem de Marte”, ou simplesmente “Mike”, depois de chegar a
Terra, é recebido por agentes do governo, que tratam logo de deixá-lo
internado em um hospital para ficar em “observação”, sem
contato com o resto da população (sobretudo do sexo feminino).
Enquanto isso, para atender aos interesses da mídia em descobrir
mais sobre este curioso humano com experiências tão únicas, é
apresentado ao mundo um ator que se passa por Valentine Smith.
Jill,
uma enfermeira que é namorada do repórter Ben Claxton, é induzida
por ele a ter um contato mais direto com Mike, principalmente após
perceberem a farsa por trás do “Homem de Marte” que apareceu na
TV. Jill consegue entrar escondida no quarto em que está o
verdadeiro Smith e, em um gesto simples e comum (compartilhando um
copo com água), acaba criando uma forte ligação entre os dois.
Burlando o forte esquema de segurança que estava “protegendo”
Mike, Jill consegue retirá-lo do hospital disfarçando-o como um paciente qualquer. Neste
momento, vemos o Homem de Marte exibir, pela primeira vez, algumas de
suas habilidades que são humanamente incomuns.
Jill
acaba escondendo-o na casa de Jubal Harshaw. Jubal é um escritor que
está quase aposentado, que gosta de se apresentar como um bon
vivant, muito rico e apreciador das coisas boas da vida, além de
possuir a mente bastante aberta (principalmente para as coisas que viria
a presenciar). É um personagem bastante interessante - e
um dos meus preferidos - que vai costurando o desenvolvimento da
história de maneira bastante orgânica, sendo o fio condutor de boa
parte da trama.
Com
uma inteligência acima dos padrões humanos, aliado à inocência
quase infantil do personagem, Mike vai buscando grokar a Terra e a
sociedade humana (o termo “grokar”, inventado pelo autor, que
possui uma grande gama de significados, foi incorporado à língua inglesa após a obra).
Mike
passa a transformar a todos ao seu redor. Gerando um sentimento como
o de uma espécie de espírito livre, em que toda forma de amor passa
a ser válida: sem limites, sem censuras, sem pudores e sem travas
morais. O Homem de Marte encara o sexo como algo muito maior que uma
união de corpos em busca de prazer; é uma conexão além da carne.
Somos apresentados a não apenas uma ideologia de vida, mas uma nova
maneira de encarar os semelhantes e o mundo ao nosso redor; com
tolerância filosófica, libertarismo humano e poligamia (que são
assuntos que chocam algumas pessoas até hoje). Além disso,
aproveita para questionar o comportamentos de algumas instituições
religiosas que vão ao encontro de outros interesses, em detrimento
da busca pela salvação da alma.
Uma
obra que abriu as portas de um novo tempo e chacoalhou a sociedade
conservadora da época. (Convenhamos, existe algo mais atrasado que
uma mentalidade “conservadora”? Ser conservador é manter as
coisas como estão, ficar estagnado e não evoluir!). Encare Um
Estranho Numa Terra Estranha de coração aberto. Com a forma de uma
sátira sociopolítica, em que são questionados valores
preestabelecidos de nossa cultura - além de todo aspecto político e
religioso, das relações humanas e como a sociedade se comporta - mais do que
uma simples leitura, o livro é um convite à reflexão. Mesmo que
nada mude na forma de pensar ou agir, se ela simplesmente te fizer
refletir sobre suas convicções e valores, já vai ter valido a
pena. O mundo está precisando de pessoas que pensam de forma
independente. Sempre questione, debata, reflita... mas esteja sempre
pronto para ter contato com outras opiniões e encarar outros pontos
de vista. Ás vezes é preciso distanciamento e tentar enxergar o
lugar que você viveu a vida toda com os olhos de um alienígena. Só
assim conseguiremos ver o que está escondido em plena vista. Não
busque neste livro por respostas - nem conspirações para te
manipular a aceitar tudo que está lá - o propósito da obra não é
este. Ele somente abre novas linhas de raciocínio para te fazer
pensar.
É
claro que qualquer obra que incentive o indivíduo a questionar os
valores que lhe são impostos goela abaixo e pensar com a própria
cabeça (e não engolir opiniões prontas e já formadas) é
normalmente transformada em algo subversivo e aliado a uma conduta
criminosa. Como o livro foi ganhando uma relevância cada vez maior,
passou a incomodar o pensamento conservador da época (que não é
muito diferente do que vemos hoje em dia). Como parte do plano para
desencorajar a leitura (transformando-a em algo proibitivo e quase
ilegal), a obra foi associada ao crime cometido por Charles Manson, que em 1969 invadiu a
mansão do diretor de cinema Roman Polanski e assassinou a atriz Sharon Tate, na época esposa do
diretor, e grávida dele. O boato plantado, afirmava que o mesmo
era fã da obra e, de alguma forma, foi o que o incentivou a cometer
o crime. Uma acusação sem muito propósito, visto que Smith era
inteiramente contra a violência. Posteriormente, o próprio Manson
afirmou desconhecer a obra. Podemos perceber que a prática de
espalhar notícias falsas não é exclusividade do nosso tempo.
Notícias que estão a serviço da desinformação sempre foram uma
forte ferramenta de manipulação. A única diferença de hoje é que
fica mais fácil desinformar, pois as bolhas de controle, que são
disfarçadas de redes sociais, são um solo fértil para a
disseminação desse tipo de prática. Mas não é o momento para
falar sobre isso... por enquanto!
Cuidado! Ele pode estar mentindo. Ou não.. ou talvez |
Excluindo-se
um diálogo entre dois personagens que apresentam um pensamento e
forma de raciocínio completamente condenáveis e equivocados, é uma
obra que vale a leitura. Em alguns momentos, senti falta de uma
presença maior do Homem de Marte. Mas nada que tenha comprometido
minha experiência. A versão original tinha cerca de 800 páginas e
aproximadamente 220.000 palavras, mas Heinlein acabou sendo forçado
a cortar aproximadamente 60.000 palavras, o que acabou não agradando
muito ao autor. Após o falecimento de Heinlein, a viúva do autor
conseguiu publicar o texto integral sem cortes. Será que ainda
teremos esta obra completa nas mãos? Estou aguardando ansioso por esse dia.
Sua escrita desperta nossa curiosidade sobre a obra!Muito bom o texto!
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