terça-feira, 19 de setembro de 2017

UM ESTRANHO NUMA TERRA ESTRANHA de Robert A Heinlein, ou "Faça Amor, Não Faça Guerra"






Por RICARDO CAVALCANTI





Há muitos anos venho ouvindo falar do livro Um Estranho Numa Terra Estranha, de Robert A. Heinlein, que havia ajudado a pavimentar o caminho para o movimento da contracultura que permeou boa parte dos anos 1960/70 e se transformou na marca daquela época. No entanto, a possibilidade de um relançamento por aqui era bastante remota. A última edição havia sido a de 1992 pela editora Record, sendo possível encontrar somente em sebos e em estado de conservação nem sempre muito animador. Felizmente estamos vivendo uma época em que passamos a ter acesso a obras clássicas e icônicas novamente em nossas mãos. Ponto para a Aleph, que vem se mostrando comprometida em trazer obras clássicas da ficção científica e vencedoras de importantes prêmios do gênero. Um Estranho numa Terra Estranha foi vencedora do Prêmio Hugo em 1962 na categoria principal. Robert A. Heinlein compõe a seleta galeria de vencedores da premiação que contêm nomes como: Isaac Asimov, Frank Herbert; Arthur C. Clark, Willian Gibson, China Miéville e Cixin Liu, autores que já chegamos a resenhar uma obra ou outra aqui no Zona Negativa.

Robert Heinlein


Mas o que torna essa obra tão importante? Para responder a isso, precisamos contextualizar um pouco. No ano de lançamento do livro o mundo estava em transformação. A Guerra do Vietnã acontecendo, o Muro de Berlim sendo construído, o fracasso na tentativa da CIA de invasão da Baía dos Porcos, a luta por igualdade racial nos Estados Unidos, Yuri Gagarin indo ao espaço (literalmente), guerra fria e tensão mundial a todo vapor. Momentos de crise costumam gerar transformações na percepção da população de como ela vê o mundo ao seu redor e como ela está inserida nesta realidade. Nesses momentos é que a arte se mostra mais importante, tendo essencial papel na transformação do status quo, seja pelo cinema, música, literatura, ou qualquer outra manifestação artística. A arte pode (e deve) ser transformadora. Bom, vamos ao livro!



Partindo do título, que é uma referência ao Velho Testamento da Bíblia, em Êxodo, capítulo 2 versículo 22, Heinlein já começa mostrando que pretende pisar em terreno perigoso. Mesmo assim, o faz de maneira bastante sutil. Conta a história de Michael Valentine Smith, que nasce em uma nave que estava em uma expedição à Marte e que acaba perdendo contato com a Terra. Sendo o único sobrevivente, acaba sendo criado pelos habitantes do Planeta Vermelho, aprendendo os costumes e a forma de enxergar a vida, que é bastante peculiar e muito diferente da nossa. Uma outra expedição é enviada novamente à Marte, vinte e cinco anos depois, quando se descobre a existência de um sobrevivente, que seria herdeiro de uma grande fortuna. A partir daí acompanhamos sua história e sua adaptação, passando pelo seu entendimento sobre a sociedade encontrada por aqui. Esta interação muda não só Smith, mas também a própria Terra. A trama se passa num futuro pós Terceira Guerra Mundial e que as viagens especiais são mais corriqueiras e simples.



O Homem de Marte”, ou simplesmente “Mike”, depois de chegar a Terra, é recebido por agentes do governo, que tratam logo de deixá-lo internado em um hospital para ficar em “observação”, sem contato com o resto da população (sobretudo do sexo feminino). Enquanto isso, para atender aos interesses da mídia em descobrir mais sobre este curioso humano com experiências tão únicas, é apresentado ao mundo um ator que se passa por Valentine Smith.

Jill, uma enfermeira que é namorada do repórter Ben Claxton, é induzida por ele a ter um contato mais direto com Mike, principalmente após perceberem a farsa por trás do “Homem de Marte” que apareceu na TV. Jill consegue entrar escondida no quarto em que está o verdadeiro Smith e, em um gesto simples e comum (compartilhando um copo com água), acaba criando uma forte ligação entre os dois. Burlando o forte esquema de segurança que estava “protegendo” Mike, Jill consegue retirá-lo do hospital disfarçando-o como um paciente qualquer. Neste momento, vemos o Homem de Marte exibir, pela primeira vez, algumas de suas habilidades que são humanamente incomuns.



Jill acaba escondendo-o na casa de Jubal Harshaw. Jubal é um escritor que está quase aposentado, que gosta de se apresentar como um bon vivant, muito rico e apreciador das coisas boas da vida, além de possuir a mente bastante aberta (principalmente para as coisas que viria a presenciar). É um personagem bastante interessante - e um dos meus preferidos - que vai costurando o desenvolvimento da história de maneira bastante orgânica, sendo o fio condutor de boa parte da trama.



Com uma inteligência acima dos padrões humanos, aliado à inocência quase infantil do personagem, Mike vai buscando grokar a Terra e a sociedade humana (o termo “grokar”, inventado pelo autor, que possui uma grande gama de significados, foi incorporado à língua inglesa após a obra). 
 



Mike passa a transformar a todos ao seu redor. Gerando um sentimento como o de uma espécie de espírito livre, em que toda forma de amor passa a ser válida: sem limites, sem censuras, sem pudores e sem travas morais. O Homem de Marte encara o sexo como algo muito maior que uma união de corpos em busca de prazer; é uma conexão além da carne. Somos apresentados a não apenas uma ideologia de vida, mas uma nova maneira de encarar os  semelhantes e o mundo ao nosso redor; com tolerância filosófica, libertarismo humano e poligamia (que são assuntos que chocam algumas pessoas até hoje). Além disso, aproveita para questionar o comportamentos de algumas instituições religiosas que vão ao encontro de outros interesses, em detrimento da busca pela salvação da alma.






Uma obra que abriu as portas de um novo tempo e chacoalhou a sociedade conservadora da época. (Convenhamos, existe algo mais atrasado que uma mentalidade “conservadora”? Ser conservador é manter as coisas como estão, ficar estagnado e não evoluir!). Encare Um Estranho Numa Terra Estranha de coração aberto. Com a forma de uma sátira sociopolítica, em que são questionados valores preestabelecidos de nossa cultura - além de todo aspecto político e religioso, das relações humanas e como a sociedade se  comporta - mais do que uma simples leitura, o livro é um convite à reflexão. Mesmo que nada mude na forma de pensar ou agir, se ela simplesmente te fizer refletir sobre suas convicções e valores, já vai ter valido a pena. O mundo está precisando de pessoas que pensam de forma independente. Sempre questione, debata, reflita... mas esteja sempre pronto para ter contato com outras opiniões e encarar outros pontos de vista. Ás vezes é preciso distanciamento e tentar enxergar o lugar que você viveu a vida toda com os olhos de um alienígena. Só assim conseguiremos ver o que está escondido em plena vista. Não busque neste livro por respostas - nem conspirações para te manipular a aceitar tudo que está lá - o propósito da obra não é este. Ele somente abre novas linhas de raciocínio para te fazer pensar.



É claro que qualquer obra que incentive o indivíduo a questionar os valores que lhe são impostos goela abaixo e pensar com a própria cabeça (e não engolir opiniões prontas e já formadas) é normalmente transformada em algo subversivo e aliado a uma conduta criminosa. Como o livro foi ganhando uma relevância cada vez maior, passou a incomodar o pensamento conservador da época (que não é muito diferente do que vemos hoje em dia). Como parte do plano para desencorajar a leitura (transformando-a em algo proibitivo e quase ilegal), a obra foi associada ao crime cometido por Charles Manson, que em 1969 invadiu a mansão do diretor de cinema Roman Polanski e assassinou a atriz Sharon Tate, na época esposa do diretor, e grávida dele. O boato plantado, afirmava que o mesmo era fã da obra e, de alguma forma, foi o que o incentivou a cometer o crime. Uma acusação sem muito propósito, visto que Smith era inteiramente contra a violência. Posteriormente, o próprio Manson afirmou desconhecer a obra. Podemos perceber que a prática de espalhar notícias falsas não é exclusividade do nosso tempo. Notícias que estão a serviço da desinformação sempre foram uma forte ferramenta de manipulação. A única diferença de hoje é que fica mais fácil desinformar, pois as bolhas de controle, que são disfarçadas de redes sociais, são um solo fértil para a disseminação desse tipo de prática. Mas não é o momento para falar sobre isso... por enquanto!

Cuidado! Ele pode estar mentindo. Ou não.. ou talvez




Excluindo-se um diálogo entre dois personagens que apresentam um pensamento e forma de raciocínio completamente condenáveis e equivocados, é uma obra que vale a leitura. Em alguns momentos, senti falta de uma presença maior do Homem de Marte. Mas nada que tenha comprometido minha experiência. A versão original tinha cerca de 800 páginas e aproximadamente 220.000 palavras, mas Heinlein acabou sendo forçado a cortar aproximadamente 60.000 palavras, o que acabou não agradando muito ao autor. Após o falecimento de Heinlein, a viúva do autor conseguiu publicar o texto integral sem cortes. Será que ainda teremos esta obra completa nas mãos? Estou aguardando ansioso por esse dia.
 




Um comentário:

  1. Sua escrita desperta nossa curiosidade sobre a obra!Muito bom o texto!

    ResponderExcluir